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Nesta seção, o portal ICL Notícias resgata textos, imagens e sons que façam o leitor dar uma pausa na marcha imediata e angustiante dos fatos para refletir com autores geniais do Brasil e de outros países.
Hoje publicamos o poema “Todas as vidas”, de Cora Coralina, que está no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (Global Editora, 1983).
Esse é um dos poemas mais celebrados de Cora Coralina, essa autora de trajetória única, que lançou seu primeiro livro aos 76 anos.
Ao longo dos versos vemos a questão da identidade como um dos norteadores da lírica da poeta goiana.
Em Todas as Vidas, vemos que as mulheres vão muito além daquilo que havia sido planejado para elas. Na leitura dos versos vemos a maestria de uma mulher que não desistiu do mundo da literatura, muito embora tenha sido profundamente estimulada a abandonar esse caminho. Com uma linguagem simples e marcada pela oralidade, Cora em “Todas as Vidas” abarca as suas múltiplas facetas.
Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute benfeito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
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Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que adotou o pseudônimo de Cora Coralina, nasceu em 20 de agosto de 1889 em na cidade de Goiás, Goiânia, antiga Villa Boa de Goyaz.
Filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador nomeado por D. Pedro II, e de Jacinta Luísa do Couto Brandão, Ana nasceu e foi criada às margens do rio Vermelho. Aos 15 anos de idade, Ana, devido à repressão familiar, vira Cora, derivativo de coração. Coralina veio depois, como uma soma de sonoridade e tradução literária.
Foi uma poetista e contista brasileira de prestígio, tornando-se um dos marcos da nossa literatura. A autora iniciou sua carreira literária aos 14 anos com o conto Tragédia na Roça, publicado no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás.
Casou-se com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas e teve seis filhos. O casamento a afastou de Goiás por 45 anos. Ao voltar às suas origens, viúva, iniciou uma nova atividade, a de doceira. Além de fazer seus doces, nas horas vagas ou entre panelas e fogão, Aninha, como também era chamada, escreveu a maioria de seus versos.
Publicou o seu primeiro livro aos 76 anos de idade e despontou na literatura brasileira como uma de suas maiores expressões na poesia moderna. Em 1982, mesmo tendo estudado somente até o equivalente ao 2º ano do Ensino Fundamental, recebeu o título de doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás e o Prêmio Intelectual do Ano, sendo, então, a primeira mulher a receber o troféu Juca Pato (1983). No ano seguinte foi reconhecida como Símbolo Brasileiro do Ano Internacional da Mulher Trabalhadora pela FAO.
Fonte: ICL Notícias