Mais cadeiras, menos voz: a reforma que diminui o cidadão

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Introdução

A representação política é a pedra angular de qualquer sistema democrático. Ela garante que a voz dos cidadãos seja ouvida e que suas vontades se traduzam em políticas públicas. No Brasil, a Câmara dos Deputados é o órgão que personifica essa representação em nível federal. A Constituição de 1988 estabelece que o número de deputados por estado e pelo Distrito Federal deve ser proporcional à sua população, com ajustes para garantir um mínimo de 8 e um máximo de 70 deputados por unidade federativa. No entanto, a dinâmica populacional do país, com suas intensas migrações internas e taxas de crescimento desiguais, exige revisões periódicas dessa representação para manter sua legitimidade e eficácia.

Recentemente, o debate sobre a representação na Câmara dos Deputados foi reacendido pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Congresso Nacional a atualização do número de deputados por estado com base nos dados do Censo Demográfico de 2022. Essa decisão impulsionou o debate de duas propostas principais: o Projeto de Lei Complementar (PLP) 148/23, que propunha uma redistribuição das 513 cadeiras existentes, e o PLP 177/2023, que aumentava o número total de deputados para 531. A aprovação deste último gerou controvérsia e levanta questões sobre a natureza da representação política no Brasil.

Embora a intenção de evitar perdas de representação para alguns estados possa ser compreensível do ponto de vista político, a solução adotada compromete princípios fundamentais da representação proporcional e da igualdade do voto.

O Contexto: a decisão do STF e as propostas de recomposição da Câmara

A necessidade de readequar a representação dos estados na Câmara dos Deputados não é nova. A última atualização importante ocorreu em 1993, baseada em dados populacionais da época. Desde então, o Brasil passou por transformações demográficas profundas, com algumas regiões experimentando um crescimento populacional muito superior a outras. Essa defasagem resultou em um sistema onde o peso do voto de um cidadão varia consideravelmente dependendo do estado em que reside, ferindo o princípio da igualdade de representação.

Diante dessa distorção, o STF, em agosto de 2023, determinou que o Congresso Nacional aprovasse uma nova lei para ajustar a representação dos estados na Câmara dos Deputados, utilizando os dados do Censo Demográfico de 2022. O prazo estabelecido foi 30 de junho de 2025, sob pena de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fixar os números para as eleições de 2026 com base na legislação vigente.

Nesse contexto, surgiram duas propostas principais:

  1. PLP 148/23: Este projeto propunha uma redistribuição das 513 cadeiras existentes na Câmara dos Deputados, sem alterar o número total de parlamentares. A lógica era simples: estados que ganharam população em relação à média nacional aumentariam sua representação, enquanto aqueles que perderam ou tiveram crescimento menor diminuiriam suas bancadas. Essa abordagem seguia o espírito da legislação existente e buscava restabelecer a proporcionalidade entre população e representação.
  2. PLP 177/2023: Este projeto, em vez de somente redistribuir as cadeiras existentes, aumentou o número total de deputados para 531. A justificativa principal foi evitar que estados perdessem representação, o que, segundo os defensores da proposta, poderia gerar instabilidade política e prejudicar a governabilidade.

Enquanto o PLP 148/23 propunha uma medida justa, o PLP 177/2023 foi uma manobra legislativa mascarada sob o discurso da estabilidade política.

A crítica ao PLP 177/2023 sob a ótica da teoria da representação

A aprovação do PLP 177/2023, em detrimento do PLP 148/23, levanta sérias preocupações do ponto de vista da teoria da representação política. A solução adotada compromete princípios fundamentais da democracia representativa.

1. Distorção do Princípio da Proporcionalidade:

Um dos pilares da representação política em sistemas democráticos é o princípio da proporcionalidade. Isso significa que a composição do parlamento deve refletir, da forma mais fiel possível, a distribuição da população ou do eleitorado. Ao aumentar o número de deputados para evitar que alguns estados percam cadeiras, o PLP 177/2023 distorce esse princípio. Estados com menor crescimento populacional ou mesmo com decréscimo populacional acabam mantendo uma representação desproporcional em relação a estados que tiveram um crescimento mais expressivo. Isso cria um desequilíbrio na representação, onde o voto de um cidadão em um estado menos populoso pode valer mais do que o voto de um cidadão em um estado mais populoso.

2. Comprometimento da igualdade do voto:

O princípio da igualdade do voto, também conhecido como “um homem, um voto” (ou, mais precisamente, “uma pessoa, um voto”), é fundamental para a legitimidade de um sistema democrático. Ele estabelece que cada voto deve ter o mesmo peso na determinação do resultado eleitoral. Ao manter artificialmente a representação de certos estados, mesmo que sua população não justifique, o PLP 177/2023 cria uma situação em que os votos dos cidadãos desses estados têm um peso maior do que os votos dos cidadãos de outros estados. Isso fere o princípio da igualdade e pode levar a um sentimento de injustiça e alienação política.

3. Primazia de interesses políticos sobre princípios democráticos:

A decisão de aumentar o número de deputados em vez de redistribuir as cadeiras existentes parece ter sido motivada mais por considerações políticas do que por um compromisso com os princípios da proporcionalidade do voto. A perda de cadeiras por parte de alguns estados certamente geraria descontentamento entre os políticos desses estados. No entanto, a busca por soluções que evitem o desgaste político não pode se sobrepor à necessidade de garantir uma representação justa e equitativa para todos os cidadãos.  Um jogo de soma positiva para os políticos, mas de soma negativa para a democracia.

Não por acaso, a condução política desse processo legislativo expõe um claro conflito de interesses. Dos últimos quatro presidentes da Câmara dos Deputados — Eduardo Cunha (RJ), Rodrigo Maia (RJ), Arthur Lira (AL) e Hugo Motta (PB) — todos são oriundos de estados que, segundo projeção do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), perderiam cadeiras na Câmara caso o PLP 148/2023 fosse aprovado.

De acordo com essas estimativas, as novas projeções populacionais do Censo 2022 implicaria na perda de vagas justamente nos estados que historicamente concentram a presidência da Câmara: Rio de Janeiro (-4 cadeiras), Alagoas (-1), Paraíba (-2).

Enquanto isso, sete estados mais populosos ou em forte crescimento seriam beneficiados, ganhando maior representatividade: Santa Catarina (+4), Pará (+4), Amazonas (+2), Ceará (+1), Goiás (+1), Minas Gerais (+1) e Mato Grosso (+1).

E como se não bastasse a coincidência dos estados diretamente interessados no resultado, há mais um detalhe revelador: a autora do PLP 177/2023 é a deputada Dani Cunha (RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, um dos interessados em manter a desproporcionalidade que favorece o seu estado.

Seria apenas uma coincidência ou a mais explícita confirmação de que, no Brasil, a política raramente age sem antes fazer suas próprias contas?

Esse cenário ajuda a compreender por que uma proposta mais justa foi derrotada. A manutenção da desproporcionalidade, neste caso, não é um acidente institucional, mas um projeto político deliberado, conduzido por lideranças diretamente interessadas em preservar sua influência desproporcional sobre o poder legislativo.

4. Impacto na Qualidade da Representação:

Aumentar o número de deputados não garante, por si só, uma melhoria na qualidade da representação. Pelo contrário, pode levar a um parlamento mais fragmentado e menos eficiente. Além disso, a manutenção de uma representação desproporcional pode levar a uma alocação ineficiente de recursos públicos, já que os estados com maior representação tendem a ter mais poder de barganha na negociação de verbas e investimentos.

5. Desafios à Legitimidade do Sistema Político:

Decisões como a aprovação do PLP 177/2023 podem minar a confiança da população no sistema político. Quando os cidadãos percebem que as regras do jogo são alteradas para beneficiar determinados grupos ou para evitar conflitos políticos, a legitimidade das instituições democráticas fica comprometida. Isso pode levar a um aumento da apatia política, do cinismo e da desconfiança em relação aos representantes eleitos.

Conclusão

A aprovação do PLP 177/2023, em detrimento de uma redistribuição mais justa das cadeiras existentes, é um retrato fiel de como a política brasileira funciona, além de um retrocesso institucional que insiste em proteger privilégios às custas da cidadania. Cada cadeira a mais na Câmara dos Deputados não representa mais vozes ou mais pluralidade. Representa, isso sim, mais recursos públicos consumidos e mais distância entre o cidadão e as decisões que moldam a sua vida.

Enquanto o país enfrenta desigualdades gritantes, a elite política continua desenhando as regras do jogo para preservar sua zona de conforto. E o resultado está diante de nós: votos que valem mais em alguns estados do que em outros, parlamentares que legislam para manter seus próprios interesses e um sistema que se afasta, cada vez mais, do povo que deveria representar.

Agora, o PLP 177/2023 segue para o Senado Federal, e cabe aos senadores uma decisão que será histórica: rejeitar essa proposta que carece de qualquer fundamentação técnica, teórica ou moral. Espera-se que o Senado não se curve diante de um projeto que afronta a ideia mais elementar de democracia — a igualdade do voto.

Por isso, a sociedade precisa compreender que as decisões do Legislativo não são apenas números ou estatísticas distantes. Elas afetam diretamente o acesso a políticas públicas, a distribuição de recursos e a qualidade da nossa democracia. Ignorar o que se decide no Congresso é permitir que poucos continuem decidindo por muitos.

O futuro da nossa representação política está sendo desenhado — e quem não acompanha o traçado, acaba sendo apagado da história.



Fonte: ICL Notícias

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