O Brasil discute com frequência a necessidade de redução da pobreza, problema abordado de maneira recorrente nos períodos eleitorais e que se agravou substancialmente durante a pandemia do Covid-19: em 2021, chegou a 62,5 milhões a parcela de brasileiros com renda domiciliar per capita de até R$ 497,00 por mês chegou, o correspondente a 29,6% da população do país.
por Samuel Hanan*
A discussão, entretanto, quase sempre deriva para a implantação de medidas meramente paliativas, dando margem a discursos assistencialistas e a propostas de programas que, se de um lado evita que milhões morram de fome, por outro passam longe da solução definitiva, capaz de devolver ou assegurar autonomia financeira a um enorme contingente de brasileiros, resgatando-lhes a dignidade de cidadãos.
É raro encontrar entre aqueles que se debruçam sobre esse antigo fantasma que assombra o país uma análise mais profunda a respeito de suas causas, suficientemente crítica para apontar razões além daquelas repisadas há décadas, muitas das quais verdadeiras, mas que não esgotam a questão.
Um olhar mais atento e menos míope a respeito revela que a grande rede de privilégios que o país criou há muito tempo – e continua a alimentar com generosos recursos públicos – constitui-se no maior entrave à redução da pobreza.
Distinções variadas criaram uma casta de donatários modernos. São indivíduos que se refestelam com seus privilégios usurpados – a conquista não lhes cabe -, sempre defendidos a unhas e dentes nas raras vezes em que a sociedade ensaia uma reação. Nada é abolido, somente acrescentado. Nunca foi tão atual o que escreveu o economista e cientista político norte-americano John Kenneth Galbraith: “As pessoas com privilégios preferem arriscar a sua própria destruição a perderem um pouco de sua vantagem material‘’.
Talvez o exemplo mais emblemático dessa deturpação de direitos seja o instituto do foro por prerrogativa de função, não por acaso mais conhecido como foro privilegiado. Garantia excepcionalíssima nos países desenvolvidos, no Brasil abarca cerca de 60.000 pessoas em razão dos cargos públicos que ocupam. São verdadeiros “monarcas” em plena República, com o direito de que seus eventuais crimes comuns e os praticados contra a administração pública tramitem desde o início nos tribunais superiores, ao contrário dos cidadãos comuns, cujos crimes são investigados e julgados em primeira instância.
Outra excrecência é a destinação de recursos públicos bilionários para o Fundo Eleitoral e o Fundo Partidário, financiadores de campanhas políticas. Esse dinheiro, distribuído de forma discricionária nas legendas, facilitam a perpetuação no poder e dificultam a renovação no Legislativo e no Executivo. Pior ainda é ver a descarada movimentação parlamentar em busca da aprovação de anistia para as multas aplicadas aos partidos que descumpriram as regras eleitorais aprovadas pelo próprio Legislativo.
Soma-se a isso a vitaliciedade de juízes, desembargadores, ministros das cortes superiores, promotores, procuradores de Justiça e membros dos tribunais de contas, cujos vencimentos, não raro, extrapolam o teto constitucional graças a penduricalhos acumulados. Assim, vai se formando o retrato das graves discrepâncias nacionais.
É possível lembrar, ainda, das polpudas e precoces aposentadorias concedidas a parlamentares, complementando seu desfrute com outras regalias oferecidas pelo cargo.
Se não bastasse, foi recentemente abrandada a lei que pune os agentes públicos em razão de atos de improbidade administrativa, fomentando na sociedade a sensação de impunidade e estimulando o falso e perigoso sentimento de que o crime compensa.
Experimentamos uma terrível deterioração dos valores éticos e morais, campo fértil para a corrupção, prática que custa caro ao país, porque desvia dos cofres públicos recursos preciosos para o atendimento das demandas da população em saúde, educação, saneamento básico, habitação e segurança. A anulação de número significativo de condenações de agentes públicos por atos de improbidade administrativa tornou o Brasil uma espécie de país de corruptores sem corrompidos, tendo em vista a devolução de bilhões de reais por empresas investigadas e condenadas pelo pagamento de propina a agentes públicos para favorecimento em licitações de empresas estatais.
A própria União se autoprivilegia quebrando o princípio federativo. Abocanha 57% a 60% de todos os recursos tributários gerados no país e devolve para os 26 estados, Distrito Federal e mais de 5.500 municípios apenas 40% a 43% do bolo arrecadatório, ignorando que o cidadão vive no município e cobra desse ente federativo economicamente mais fraco os serviços necessários ao seu bem-estar.
Há uma série de privilégios, escancarados ou disfarçados, responsáveis pelas desigualdades sociais e, portanto, pela pobreza que afeta uma massa enorme de brasileiros, cidadãos de segunda classe e condenados a essa situação por terem nascido ou por viverem em determinada região do país. Renúncias fiscais, que deveriam contribuir para a redução das desigualdades sociais, conforme manda a Constituição Federal, historicamente têm servido para privilegiar determinados setores da economia e favorecer os estados mais ricos. Para minimizar essa distorção, é necessária mudança legislativa para punir com penalidades severas os governantes que concederem renúncias fiscais ou os gastos tributários acima de 1,5% ou 2% do PIB, além de criar a obrigatoriedade de se destinar 70% ou 80% do valor das renúncias fiscais concedidas para a correção das desigualdades regionais.
O efetivo enfrentamento da pobreza somente se dará também com medidas que incluem a mudança do sistema tributário, tirando a regressividade dos impostos, aliviando a carga de tributos sobre o consumo e, assim, barateando os produtos de primeira necessidade.
É primordial, ainda, que o salário-mínimo seja corrigido anualmente pelo índice de inflação medido nos 12 meses anteriores, além de se corrigir substancialmente a tabela do Imposto de Renda, de modo a levar a zero, em poucos anos, a enorme defasagem acumulada, responsável por tirar compulsoriamente valor considerável do bolso dos contribuintes, em favor da União.
Não é, entretanto, uma luta que se trava apenas no campo da economia. É fundamental restabelecer a moral e a ética e um bom começo seria o restabelecimento da prisão em segunda instância (após sentença condenatória confirmada por órgão colegiado) e tornar imprescritíveis os crimes praticados contra a administração pública.
É indisfarçável. A rede de privilégios, enorme e intocável, transformou o Brasil em uma nação sui generis: um país de corruptores sem corruptos; uma República federativa sem federação autêntica e repleta de monarcas, em que a União se apodera da imensa maioria dos recursos, teimando em ignorar que o cidadão nasce, vive e morre no município. Um país que, via política fisco-tributária e de renúncias fiscais, mantém aberta a maior fábrica de pobreza; uma nação geradora de gigantescos e repetidos déficits públicos, e que não aceita a busca do equilíbrio fiscal por meio da redução dos desperdícios do dinheiro público. E também um país que rejeita a possibilidade de prisão em segunda instância e que não se movimenta para tornar imprescritíveis os crimes praticados contra a administração pública.
Há mais de 200 anos atrás, o pesquisador francês Yves Saint-Hilaire, espantado com a ação das formigas cortadeiras, advertiu: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Privilégios, clientelismo, e o inchaço da máquina pública são as novas saúvas que insistem em tentar acabar com o país. O célebre jurista e jornalista Joaquim Nabuco já advertia, no século 19, que “não há ponto novo de partida que não encontre incrédulos e inimigos”. Obviamente, qualquer proposta voltada à redução de privilégios sempre terá a oposição dos beneficiados pelas benesses do poder. Essa resistência precisa ser enfrentada e vencida, sem o que a pobreza e a fome continuarão sendo o grande flagelo social do Brasil.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. Site: https://samuelhanan.com.br