Transportadora ligada ao Grupo Zema é autuada por trabalho análogo à escravidão

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Pedro Stropasolas, do Brasil de Fato

Em Araxá (MG), 22 trabalhadores foram encontrados em situação análoga à de escravo prestando serviço no Centro de Distribuição e Apoio do Grupo Zema, pertencente à família do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), em ação fiscal realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 4 de fevereiro deste ano. A ação contou com a participação de seis auditores fiscais do trabalho, dois procuradores do Ministério Público do Trabalho e seis policiais rodoviários federais.

Os trabalhadores eram motoristas da empresa Cidade das Águas Transportes, contratados para levar móveis e eletrodomésticos às lojas do Grupo Zema, gigante do setor moveleiro no estado.

A inspeção foi realizada dentro do próprio Centro de Distribuição e Apoio do Grupo Zema. Segundo o relatório de inspeção do Ministério Público do Trabalho (MTE), a situação dos trabalhadores foi classificada como análoga a escravidão pela existência de jornadas exaustivas, que chegavam a 19 horas diárias.

“Esses dados foram analisados e são o fundamento para a caracterização da jornada exaustiva, não havendo justificativa para a afirmação de que não foi informada dos critérios utilizados pela equipe de fiscalização para a citada caracterização ou de que não haveria elementos suficientes para tal”, destaca trecho do relatório.

“Eles [os motoristas] ficavam nessas jornadas exaustivas prestando serviço para o Grupo Zema. O Grupo Zema, primeiro, tinha um serviço primarizado; depois de uns dois ou três anos, resolveram encerrar essa atividade tocada por eles e terceirizaram, passaram até os caminhões para essas empresas. Então eles têm uma situação de amizade, favores, tanto com a Cidade das Águas como as outras prestadoras que lá estão fazendo o serviço”, afirma Rogério Lopes Costa Reis, auditor fiscal do trabalho responsável pela ação.

O trajeto dos móveis

Os dados que evidenciam as condições degradantes de trabalho foram consultados em papeletas e roteiros de transporte disponíveis no próprio Centro de Distribuição e Apoio do Grupo Zema. Eram relatórios de ponto e planilhas com as anotações das jornadas dos motoristas.

Segundo informações obtidas pela reportagem, toda a documentação dos empregados, especialmente o controle de jornada, era responsabilidade da Cidade das Águas. Mas era coordenação de transporte do Grupo Zema, segundo o relatório feito pelos auditores-fiscais do trabalho, que estabelecia as rotas dos caminhões.

Com base na distância e região de entrega dos produtos, os trajetos eram repassados por e-mail para a empresa Cidade das Águas, que após análise, fazia ajustes para evitar trechos de estrada de terra. Depois, a transportadora escalava os motoristas de cada rota. As alterações feitas eram enviadas novamente para a Coordenação do Grupo Zema.

Os motoristas, segundo o relato dos auditores, só saíam do Centro de Distribuição e Apoio do Grupo Zema após o funcionário da empresa de móveis assinar o ‘Controle da Viagem’. Os trabalhadores também recebiam o Conhecimento de Transporte Eletrônico (CTe), documento digital obrigatório para o transporte de cargas no Brasil.

Em cada ponto de descarga de imóveis e eletrodomésticos, o gerente de cada loja do grupo Zema anota o dia, a hora e o número do lacre do baú. Depois da entrega, na volta para o CDA, o funcionário da cancela do grupo Zema registra a chegada dos motoristas. É nesse momento que o ‘Controle da Viagem’ é retido.

De acordo com o auditor Costa Reis, o Grupo Zema tinha acesso “indireto” aos horários de trabalho dos motoristas. “O problema da jornada de trabalho são os períodos de descanso, que eles não tinham. Ali [no sistema do grupo] tem só [o registro da] saída e chegada, mas eles sabem quanto tempo o trabalhador parou porque eles têm o acompanhamento de GPS em todos os automóveis”, explica.

Ele revelou que a prestação de serviço terceirizado era exclusiva para a Eletrozema, do Grupo Zema, que frequentemente impunha uma carga de trabalho excessiva. “Eles usavam e abusavam [dos trabalhadores], porque a Eletrozema falava: ‘Vocês têm que entregar, não quero nem saber’. Eles não querem nem saber se o trabalhador vai dobrar de turno, ou se quem vai pegar [o turno] no outro dia é o mesmo trabalhador… Eles não tinham essa preocupação.”

Com base nos documentos e no relato dos trabalhadores, a auditoria-fiscal do trabalho identificou as seguintes irregularidades nas jornadas dos motoristas:

  • Ausência de 11 horas de descanso dentro do período de 24 horas;
  • Ausência do intervalo mínimo de uma hora para refeição;
  • Prorrogação da jornada diária de trabalho do motorista profissional e/ou do ajudante empregado nas operações por lapso de tempo superior a duas horas extraordinárias ou, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo, por mais de quatro horas extraordinárias.
  • Ausência de escala de revezamento nos serviços exigidos no domingo.

Os relatos dos trabalhadores

O relatório de fiscalização da inspeção do trabalho reúne relatos de cinco dos 22 motoristas submetidos a jornadas excessivas de trabalho. Em um dos depoimentos, o motorista afirma aos auditores de trabalho que, com a liberação da empresa, a jornada média era de 16 horas por dia, registradas no ponto. Em algumas entregas, diz o trabalhador, chegava a trabalhar 26 horas diretas.

O mesmo prestador de serviço relatou que almoçava na boleia do caminhão, e não era raro ter que dormir no veículo. A jornada, geralmente, começava entre 3h e 4h, e era encerrada às 20h. Pai de cinco filhos, o trabalhador diz que tinha um salário base de R$ 2.664. E, com as horas extras, chegava a tirar até R$ 7.000. Segundo o relato do trabalhador inserido no relatório de fiscalização, ele não tinha o FGTS depositado desde agosto de 2024.

Um segundo trabalhador diz trabalhar “na empresa Cidade das Águas, prestadora de serviços do Grupo Zema, como motorista de carreta, há aproximadamente sete anos”. Antes da atividade ser terceirizada, ele trabalhava na Eletrozema. O baú da sua carreta, inclusive, pertence à antiga Eletrozema, segundo o relato. Já o cavalo, ou seja, a parte da frente da carreta, é da Cidade das Águas.

O motorista descreve que é preciso “dirigir muitas horas para conseguir atender a demanda de entrega nas lojas”. Em uma das rotas, ele chega a dirigir de terça-feira a sábado, indo e voltando do Centro de Distribuição do Grupo Zema, fazendo pernoites de duas a três horas.

Outro trabalhador diz sofrer de ansiedade e que não consegue ir ao médico em decorrência do excesso de jornada. A média de sua jornada são 19 horas por dia, e as paradas para o almoço são raras. Ele afirma que dorme no caminhão deitando os bancos, sob uma tábua e um colchonete de 4 cm.

O relato do motorista apresenta uma série de impactos das jornadas excessivas, como a alimentação prejudicada, a falta de academia e atividades físicas; a ausência no velório de tios e da avó; e a perda de dezenas de aniversários.

“Eles ficavam às vezes 12 horas disponíveis para o empregador, trabalhavam nos feriados, nas folgas, o dia inteiro. Era esse tipo de irregularidade”, acrescentou Rogério Reis.

Empresa nega violações

Em 6 de fevereiro de 2025, a Cidade das Águas recebeu uma notificação para paralisar imediatamente as atividades dos trabalhadores submetidos a jornadas extenuantes e rescindir seus contratos.

A empresa respondeu impetrando um Mandado de Segurança Preventivo na justiça, alegando falta de apresentação formal dos motivos para a notificação por trabalho escravo e outras ilegalidades.

No mandado de segurança, a empresa afirmou ter recebido de “forma arbitrária a notificação” e que não seria possível realizar as rescisões contratuais e o pagamento integral das verbas rescisórias dos 22 trabalhadores até a data sugerida pelo MTE, 11 de fevereiro.

O pedido da empresa à justiça foi atendido por meio de uma decisão liminar, que determinou que o MTE deveria se abster de rescindir os contratos de trabalho; embargar e/ou interditar a operação da empresa; incluir a Impetrante na Lista Suja do Trabalho Escravo; e veicular alguma notícia referente ao caso. Essas determinações deveriam valer até que a empresa fosse formalmente notificada das razões da autuação.

O auditor fiscal do trabalho Rogério Reis afirmou que a Cidade das Águas “sonegou informação para o juiz”, em audiência. “Falaram que não sabiam por que estavam sendo caracterizados a trabalho análogo à escravidão, o que é mentira porque tivemos uma reunião com a Cidade das Águas, com o gerente e o advogado do empreendimento. Entregamos o papel e explicamos tudo o que está caracterizando, o que consideramos das jornadas, o que está sendo ultrapassado.”

Para esclarecer a situação, o MTE se reuniu com representantes do Ministério Público Trabalho (MPT), da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Defensoria Pública da União (DPU). “Depois dessa reunião, a AGU fez um parecer falando que a condição resolutiva estava explícita e que já poderíamos dar prosseguimento aos atos administrativos devidos pela notificação”, conta Costa Reis.

Neste momento, como a liminar ainda não havia sido, de fato, revogada, a Cidade das Águas acionou novamente a Justiça, com o pedido de uma liminar para que a notificação não tivesse valor. “Então fizemos uma terceira notificação”, diz o auditor.

Atuando no setor há 13 anos, ele revela que foi a primeira vez que presenciou esse tipo de resistência no campo judicial. “Esperamos que não vire moda porque isso atrapalha os nossos procedimentos administrativos, além de significar um grande prejuízo aos trabalhadores.”

A liminar concedida no mandado de segurança perdeu a validade no dia 27 de março, mais de um mês após os autos de infração terem sido lavrados pelo MTE. Dessa forma, a rescisão dos contratos dos trabalhadores e o pagamento de verbas rescisórias e demais obrigações estão programadas para ocorrer no dia 14 de abril.

Sobre o fato de o Grupo Zema não ter sido autuado diretamente, Rogério Reis explica: “O auto de trabalho escravo é um pouco mais complicado porque as empresas podem ser duplamente autuadas por irregularidades de segurança e saúde. No caso da caracterização, nós respeitamos o vínculo empregatício com a empresa que está prestando serviço.”

Conforme o auditor, essa particularidade decorre da reforma trabalhista, que passou a admitir a terceirização em qualquer situação: tanto para atividade fim, quanto para atividade meio. “Só podemos descaracterizar uma terceirização quando é feita com pessoa jurídica economicamente e financeiramente incapaz ou se não atender alguns requisitos da própria lei alterada de terceirização, não é o caso dessa situação.”

Zema integra conselho do grupo familiar e participa das decisões

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (NOVO), é membro do conselho do Grupo Zema. Em seu site institucional, o próprio governo de Minas destaca a trajetória do governador à frente dos negócios da família. Ele assumiu o comando das Lojas Zema em 1991 e foi responsável pela expansão da rede, que saiu de quatro unidades em Minas Gerais para mais de 400 espalhadas por seis estados.

Atualmente, segundo a pequena biografia profissional publicada no portal da gestão estadual, Zema segue participando das decisões do grupo empresarial. A Eletrozema, citada na fiscalização trabalhista como tomadora dos serviços terceirizados em que foram identificadas jornadas exaustivas, integra o conglomerado.

Outro lado

Em resposta à reportagem, a transportadora Cidade das Águas declarou que “durante todo o procedimento de fiscalização a empresa foi impedida de usufruir do seu direito de contraditório e ampla defesa, sofrendo por consequência uma interpretação arbitrária dos auditores e fora da realidade vivenciada pelos funcionários”.

A companhia afirma ser “fiel cumpridora das obrigações legais, notadamente trabalhista, preservando integralmente todos os direitos individuais e coletivos dos seus funcionários”. O posicionamento pode ser lido na íntegra ao final desta matéria.

O Brasil de Fato também enviou pedidos de posicionamento para o governador de  Minas Gerais e à Eletrozema, mas até a publicação da reportagem não obteve resposta.

Lista Suja

Nesta semana, o MTE divulgou a atualização da “lista suja” do trabalho escravo, que exibe os empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão. O estado de Minas Gerais lidera o ranking no Brasil e é responsável por 159 dos 745 nomes divulgados, equivalente a 21% do total.

Em outubro de 2023, a Lei 24.535/2023, de autoria do deputado Luta Betão (PT) foi sancionada, determinando a divulgação da “lista suja” de empregadores no site oficial do governo de Minas Gerais. A bancada, no entanto, denuncia que até hoje o governo Zema descumpre a medida.

Além do não cumprimento da legislação, o Bloco Democracia e Luta da Assembleia Legislatiba de Minas Gerais (ALMG), da qual Betão faz parte, denuncia que Zema já fez apologia à escravidão contemporânea.

Em fevereiro de 2022,  Zema defendeu em vídeo publicado nas redes sociais que empresas devem investir no Vale do Mucuri e do Jequitinhonha porque são regiões tão pobres que se “você oferecer um salário-mínimo ao trabalhador, haverá fila de pessoas para trabalhar para você”.

O governador afirmou ainda que nessas regiões de Minas Gerais se “contrata uma empregada doméstica para ganhar 300 reais por mês”. O comentário foi visto, pelos parlamentares, como uma apologia ao trabalho análogo ao de escravo.

Íntegra do posicionamento da empresa Cidade das Águas

A empresa Cidade das Águas, consultada pelo jornal Brasil de Fato sobre o processo de fiscalização ocorrido em fevereiro pelo Ministério do Trabalho, esclarece que a realidade dos funcionários da empresa não contempla o entendimento subjetivo e arbitrário dos auditores do trabalho relacionado a situação análoga à escravo.

Durante todo o procedimento de fiscalização a empresa foi impedida de usufruir do seu direito de contraditório e ampla defesa, sofrendo por consequência uma interpretação arbitrária dos auditores e fora da realidade vivenciada pelos funcionários.

A Cidade das Águas reforça seu compromisso de fiel cumpridora das obrigações legais, notadamente trabalhista, preservando integralmente todos os direitos individuais e coletivos dos seus funcionários.

A empresa vem adotando todas as medidas legais e administrativas para combater as ilegalidades dos procedimentos de fiscalização e o próprio entendimento distorcido da realidade.

Por fim, a empresa rebate todas as alegações apresentadas pelos auditores do trabalho, principalmente no Auto de Infração injustamente lavrado, sendo certo que as condições de trabalho desenvolvidas são adequadas e em consonância com a legislação que trata a matéria e normas coletivas aplicadas aos funcionários, com a devida assistência do Sindicato dos Trabalhadores.



Fonte: ICL Notícias

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