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Por André Uzêda
“Desde quando meu pai me criou aqui nesta terra, eu nunca vi luz por aqui. Já ouvimos várias promessas de que seria instalada, mas nunca chegou”, conta seu José Aleixo, de 74 anos, sob a luz fraca de um candeeiro.
O relato foi gravado em vídeo por moradores da comunidade quilombola de Volta Miúda, pertencente ao município de Caravelas, no extremo sul da Bahia. Os registros foram feitos na tentativa de sensibilizar a empresa Suzano, uma gigante multinacional na produção de papel e celulose, a cooperar na instalação de energia elétrica para o povoado, que tem cerca de 600 habitantes.
A cidade de Caravelas está contemplada no programa Luz Para Todos, criado no primeiro governo Lula e retomado em 2023, com a volta do petista à Presidência. Em parceria com a Coelba (empresa privada de energia da Bahia), a União investiu, somente ano passado, R$ 3 bilhões para levar energia para comunidades quilombolas, indígenas e de baixa renda do estado.
Em Volta Miúda, no entanto, há um impasse que afeta diretamente 13 famílias, em um total de 50 pessoas. Como o povoado está muito próximo de um enorme latifúndio de plantação de eucalipto — usado como matéria-prima para a produção de papel —, a informação é que a Suzano tem dificultado os trâmites para a instalação de postes de distribuição de luz elétrica para estas famílias. O restante da comunidade já tem acesso à energia.
“Desde 2023, nós já fizemos três solicitações diretas para a Coelba. As duas primeiras foram prontamente negadas. A última ainda está em análise, pois nós fomos para cima para denunciar este absurdo que é o descaso com nossa vida”, diz Célio Leocádio, presidente da Associação Quilombola de Volta Miúda.
A reportagem apurou que a Suzano alega problemas operacionais à Coelba para a colocação dos postes. A empresa pontua que as estruturas, mesmo se forem instaladas fora da propriedade da companhia, precisam de um distanciamento mínimo de segurança das plantações para impedir eventuais acidentes, como incêndios provocados por curto-circuitos.
Ocorre que a Suzano ocupa uma enorme faixa territorial no extremo-sul da Bahia, margeando boa parte da BR-101 e da BR-418, muito próximas das áreas de acostamento das rodovias. A solução negociada seria a própria empresa ceder uma área de contenção dentro do seu latifúndio. Reuniões já foram marcadas para tratar do tema, mas ainda não avançaram para uma resposta positiva da empresa.

José Aleixo, 74 anos, conta que nunca viu luz elétrica na comunidade quilombola de Volta Miúda, no extremo sul da Bahia. (Foto: Jaco Galdino)
Procurada pelo ICL Notícias, a Suzano negou haver “qualquer impasse” com as comunidades quilombolas, pois ainda aguarda receber da Coelba “o documento que define o traçado da rede elétrica, necessário para o planejamento e definição da construção da rede nas áreas da companhia”.
A Suzano disse ainda que “sempre esteve aberta ao diálogo e busca o bem-estar das comunidades situadas nas proximidades”, como uma das premissas de seu “modelo de negócios”.
O ICL Notícias apurou que, diferentemente do que a Suzano informa, a empresa já discutiu com a Coelba a colocação da rede elétrica. A própria concessionária de energia da Bahia confirmou esta informação. Em nota, a Coelba disse que “vem realizando tratativas” para que comunidades locais sejam atendidas.
No entanto, há pendências para resolver o problema, pois “a instalação da rede elétrica — postes, fiação e demais equipamentos — passa por terras privadas de terceiros, ou em áreas de preservação ambiental permanente”, diz a Coelba.
O Ministério de Minas e Energia, responsável pelo programa Luz Para Todos, também foi procurado, mas não enviou resposta até o fechamento desta reportagem.
Escuridão para todos
A escuridão que cega os moradores da Volta Miúda quando a noite cai não é um caso isolado na região. Outras comunidades tradicionais também padecem do mesmo problema. A reportagem levantou que a mesma situação se repete em oito cidades do extremo-sul da Bahia: Alcobaça, Ibirapuã, Mucuri, Nova Viçosa, Mascote, Guaratinga, Cabrália e Belmonte.
De acordo com a Coelba, as obras para atender todas estas comunidades têm extensão de 94,27 quilômetros e incluem a instalação de 1.405 postes.
Em muitas destas localidades, as fazendas de eucalipto pertencem à empresa Veracel Celulose — que, embora tenha administração própria, é controlada pela Suzano e pela Stora Enso, uma multinacional finlandesa. Cada sócio tem 50% de participação na empresa.
A Veracel tem capacidade para produzir 1,1 milhão de toneladas de celulose por ano e atingiu R$ 1,8 bilhão de receita líquida em 2022, no último balanço divulgado.
Procurada pela reportagem, a Veracel disse que não se opõe “à instalação de postes ou redes elétricas em áreas próximas às suas propriedades”, além de afirmar que não possui “nenhum projeto devidamente protocolado que esteja pendente de análise ou ação da empresa”.
A companhia também pontuou que apoia o “acesso à energia elétrica para as comunidades e atua para que não haja impedimentos à sua viabilização”, desde que “atendam todas as conformidades legais e ambientais necessárias”.
Desde 2017, tramita no Senado Federal a PEC 44/2017, que tenta transformar o acesso à energia elétrica em direito social garantido pela Constituição — a exemplo do que acontece com educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, entre outros.
O objetivo da proposta é elevar o status da necessidade de energia elétrica para garantir o seu fornecimento para todo o território brasileiro. A PEC foi apresentada pelo senador Telmário Mota (PTB-RR), mas ainda não foi votada em plenário.
Em agosto de 2023, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a União, o governo da Bahia e as empresas Suzano e Veracel para assegurar a proteção aos territórios de comunidades tradicionais no extremo sul do estado.
A ação cobra providências urgentes para conter o “avanço irregular da atividade econômica e reparar os danos causados às comunidades quilombolas e indígenas”. Uma das localidades citadas é da Volta Miúda, em Caravelas.

Moradores de Volta Miúda aram a terra cercados por grande latifúndio da Suzano. MPF ajuizou ação contra empresa. (Foto: Bruno Locatelli)
O MPF lista que o monocultivo de eucaliptos gera degradação ambiental, escassez de água, improdutividade do solo, diminuição da biodiversidade e prejuízo à saúde da população, em razão da pulverização excessiva de veneno, além de ampliação da pobreza, obrigando pessoas a deixarem a região para sobreviver. A ação cita que duas comunidades quilombolas desapareceram na região (Naiá e Mutum) e outras tantas estão ameaçadas.
“Parece muito que a Suzano quer fazer de tudo para expulsar a gente aqui do território. Talvez, se finalmente a gente sair, nossas antigas casas virem também plantação de eucalipto”, diz Leocádio.
Riqueza x pobreza
Em seu site oficial, a Suzano se declara como a “a maior fabricante de celulose no mundo” e uma “das maiores produtoras de papéis da América Latina”. A empresa mantém escritórios em países como Argentina, Estados Unidos, Canadá, Áustria, Israel, Finlândia e China. E fábricas de produção em sete estados brasileiros: Pará, Maranhão, Ceará, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e São Paulo.
Na Bahia, a unidade é chamada de Mucuri e produz 1,7 milhão de toneladas de celulose por ano, de acordo com a própria multinacional brasileira. O terreno de plantação de eucalipto é gigantesco, ocupando 254,7 mil hectares — 1 hectare equivale a 10 mil metros quadrados. Ou seja, um campo de futebol nas medidas oficiais da Fifa.
A Suzano fechou o ano de 2024 com recorde de vendas. Faturou R$47,4 bilhões, conforme alardeou em seu próprio site oficial. A empresa também constantemente divulga ações de sustentabilidade, como replantio de árvores, e de impacto social, dizendo apoiar ações de capacitação, empreendedorismo e artesanato nas comunidades onde está inserida.
“É uma contradição enorme uma empresa tão rica, que vive de desenvolver novas tecnologias para sua produção, impossibilite nós, antigos moradores desta terra, de ter o mínimo acesso à energia elétrica”, pontua o presidente da Associação Quilombola de Volta Miúda.
(Imagem de abertura: vista aérea do latifúndio de eucalipto da empresa Suzano, que divide área com a comunidade quilombola de Volta Miúda. Foto: Bruno Locatelli)
Fonte: ICL Notícias