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Por Valter Mattos da Costa*
Silvaneide Monteiro Andrade, 56 anos, professora de Língua Portuguesa, morreu na manhã de uma sexta-feira, 30 de maio, dentro da sala de coordenação do Colégio Estadual Cívico-Militar Jayme Canet, no bairro Xaxim, em Curitiba.
Durante uma reunião com a equipe pedagógica e representantes do Núcleo Regional de Educação, foi cobrada por não ter cumprido metas de plataformas digitais. Sofreu um infarto fulminante. O SAMU foi acionado, mas nada pôde ser feito.
O corpo dela, estendido entre cadernos e relatórios, é a imagem final de um sistema que colapsa sobre os ombros de quem deveria ser amparado. Ninguém a socorreu a tempo: nem a escola, nem o Estado, nem a lógica que nos rege.
Não é um caso isolado. É o que se repete. Uma engrenagem que gira com a frieza de um relógio, transformando a sala dos professores em corredor hospitalar, e o planejamento pedagógico em protocolo de gestão inumana.
Desde a pandemia, a educação pública foi capturada por um delírio tecnocrático. Alunos voltaram com defasagens profundas (alguns analfabetos no segundo segmento do Ensino Fundamental). A resposta do poder público? Transferir a culpa e ampliar a pressão sobre quem está na linha de frente.
Deveria haver reforço pedagógico. Mas o que se reforça é a cobrança. O professor é convocado para ser cobrado em reuniões vazias e enfadonhas, formações descoladas da realidade e metas inalcançáveis. Enquanto isso, as salas continuam superlotadas, abafadas, violentas e sem mediação.
Crianças neurodivergentes, com ou sem laudo, são entregues a docentes sem qualquer apoio. TEA, TDAH, TOD, DI – siglas que escondem vidas únicas, jogadas ao acaso. A ausência de políticas inclusivas aprofunda o esgotamento de quem ensina.
Três turnos de trabalho. Para muitos, manhã, tarde e noite. E ainda há o quarto turno: em casa, corrigindo provas, lançando notas, preenchendo formulários. A dignidade não cabe no contracheque. Os boletins não refletem aprendizagem, apenas a simulação de um progresso que nunca ou quase nunca existiu.
Alunos sem domínio básico de leitura, escrita ou operações matemáticas são continuamente empurrados de ano em ano. As secretarias de Educação exigem aprovações em série, mesmo sem aprendizagem real. Gestores distantes da sala de aula impõem metas que ignoram a realidade escolar. O conteúdo vira maquiagem, a progressão vira farsa, e o professor, cúmplice forçado de um teatro que só agrava o abandono.
Na mochila, além de provas e diários, vai o cansaço, a frustração e o silêncio. Com sorte, algum remédio tarja preta. A psiquiatria virou extensão da sala dos professores. E a escola, um campo de extermínio lento.
Enquanto isso, influencers lotam teatros fazendo piada da dor alheia. Riem da depressão docente como quem nunca pisou numa sala de aula. Nas redes sociais, se acumulam seguidores zombando do sofrimento psíquico de quem ensina. Transformam em entretenimento o colapso emocional de quem sustenta a educação pública no país – e ainda lucram com isso (tal como já mencionei em outro artigo: Tem muita gente ganhando dinheiro com a Educação, mas não é o Professor).
E as cenas de cobrança se repetem: supervisores distantes da realidade escolar perguntam por que a aula não está mais atrativa. Sugerem vídeos, joguinhos, gamificação, outras fórmulas prontas e o diabo a quatro. Ignoram o calor insuportável, o vandalismo, a ausência dos pais. O problema, invariavelmente, recai sobre o docente.
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano e professor da Universidade de Berlim, no livro “A Sociedade do Cansaço” (2010), alerta para uma era onde o excesso de positividade e desempenho adoece o sujeito. A produtividade virou tirania. A escola virou sua trincheira.
É disso que se trata: maquiar indicadores para captar verbas, forçar aprovações em massa, culpar os docentes quando os números não satisfazem. A estatística virou fetiche. A dor virou ruído. E o professor, bode expiatório.
Famílias entregam seus filhos às escolas sem ensinar o mínimo de respeito ao educador. E quando a agressividade explode, não se interroga o ambiente doméstico. Aponta-se o dedo para o docente, mais uma vez desamparado.
A morte da professora Silvaneide expõe o colapso moral de um sistema que exige sem oferecer a estrutura necessária. Cobra sem apoiar. Adoece sem cuidar. Educadores estão sendo levados ao limite – e a sociedade disfarça isso como “fatalidade”.
Os olhos dela se fecharam entre cobranças e metas. A rotina escolar prosseguiu, como tantas vezes faz diante do absurdo. Mas algo aconteceu. E está acontecendo. O risco é real. E cresce a cada chamada realizada no diário de classe.
É preciso romper o ciclo. Reduzir jornadas, garantir estrutura, contratar apoio, valorizar salários e devolver dignidade a quem educa. Enquanto isso não acontecer, outras Silvaneides continuarão a sucumbir. É hora de agir, antes que seja tarde demais.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editorda Dissemelhanças Editora.
Fonte: ICL Notícias