Primeiro capítulo do livro ‘Patriota’, de Alexei Navalny

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Trecho do livro “Patriota”, de Alexei Navalny (Editora Rocco):

Capítulo 1

 

Morrer, na verdade, não doeu. Se não estivesse dando meu último suspiro, eu jamais teria me estendido no chão do banheiro de um avião. Como podem imaginar, não era lá muito limpo.

A viagem era de Moscou a Tomsk, na Sibéria, e eu estava muito satisfeito. Eleições regionais aconteceriam dentro de duas semanas em várias cidades da Sibéria, e meus companheiros da Fundação Anticorrupção (FA) e eu estávamos decididos a infligir uma derrota ao partido do governo, Rússia Unida. Seria uma mensagem importante: mesmo depois de vinte anos no poder, Vladimir Putin não era onipotente nem sequer apreciado naquela região da Rússia — embora muita gente por lá assistisse aos apresentadores e comentaristas de jornais da tv entoando loas ao líder do país 24 horas por dia, sete dias na semana.

Há vários anos eu era impedido de concorrer a cargos públicos. O Estado não reconhecia o partido político liderado por mim e recentemente se recusara a registrá-lo pela nona vez em oito anos. Por algum motivo
nós sempre deixávamos de “preencher os formulários corretamente”. Nas raras vezes em que o nome de um dos nossos candidatos chegava a constar da cédula, os pretextos mais absurdos eram invocados para
considerá-lo inelegível. O desafio enfrentado pela nossa rede — que no auge de suas atividades chegou a ter oitenta escritórios regionais, sendo uma das maiores do país e sob constante ataque do Estado — exigia,
portanto, uma capacidade esquizofrênica de vencer eleições das quais havíamos sido proibidos de participar.

No nosso país, onde, durante mais de duas décadas, o regime autoritário teve como prioridade inculcar nos eleitores a crença de que eles não têm poder nenhum e não podem mudar nada, nunca foi fácil convencer
as pessoas a saírem de casa para votar. Mas a verdade é que a renda da população vinha caindo há sete anos consecutivos. Se pelo menos um terço dos que estavam fartos do regime pudessem ser levados até as cabines de votação, nem um único candidato de Putin teria chance. Mas como fazer as pessoas votarem? Pela persuasão? Oferecendo recompensas? Optamos por deixá-las realmente putas.

Há vários anos meus companheiros e eu vínhamos filmando uma interminável novela sobre a corrupção na Rússia. Nos últimos tempos, quase todo episódio registrava três a cinco milhões de acessos no YouTube. Conhecendo a realidade russa, desde o início descartamos qualquer abordagem jornalística escorada em ressalvas cheias de dedos — “alegadamente”, “possível”, “suposto” — como nossos assessores jurídicos teriam preferido. Um ladrão era chamado de ladrão, e corrupção, de corrupção. Se alguém tinha uma propriedade gigantesca, não nos limitávamos a revelar sua existência, mas fazíamos vídeos com drones e mostrávamos a propriedade em todo o seu esplendor. Também descobríamos o valor e o cotejávamos com a renda modesta declarada oficialmente pelo burocrata que a possuía.

É possível teorizar infindavelmente sobre corrupção, mas preferi uma abordagem mais direta — como examinar as fotografias do casamento do secretário de imprensa do presidente e, no momento em que ele beija a noiva, focar o relógio espetacular que aparece por baixo da sua manga. Obtivemos junto a um fornecedor suíço um certificado de que o relógio custa 620 mil dólares e o mostramos aos cidadãos do nosso país, onde uma a cada cinco pessoas vive abaixo da linha da pobreza — 160 dólares por mês, o que seria mais apropriadamente considerado como a linha da miséria. Tendo devidamente indignado o público com o descaramento da corrupção no mundo oficial, o passo seguinte é encaminhá-lo para um website que lista as pessoas em quem eles devem votar se não quiserem continuar sustentando a vida de luxo dos burocratas.

Funcionou.

Ao mesmo tempo divertimos e enfurecemos nosso público com imagens da vida dos “humildes patriotas que governam nossa terra”, explicando como funcionam os mecanismos da corrupção e propondo iniciativas concretas para causar o máximo de dano ao sistema de Putin. Material não nos faltava.

Olhando pela janela do avião, eu pensava que a essa altura tínhamos o bastante para carregar no YouTube dois ou três vídeos sobre a corrupção nas cidades da Sibéria. Eles seriam vistos por milhões de pessoas, centenas de milhares delas vivendo em Novosibirsk e Tomsk. Essas pessoas não só os veriam como ficariam revoltadas o suficiente para atender ao nosso chamado para comparecerem às urnas e votarem contra os candidatos do partido de Putin.

Um sorriso irônico veio a mim quando me lembrei das maneiras como as autoridades oficiais, que sabiam o que estávamos preparando, tinham tentado boicotar nosso plano. Para funcionários de todos os níveis,  minhas viagens pela Rússia eram como uma capa vermelha agitada diante de um touro. Eles encaravam minhas visitas como uma ameaça e inventavam infindáveis acusações judiciais para entravar meus deslocamentos pelo país, pois um réu não pode se afastar da região de sua residência. Desde 2012, passei um ano em prisão domiciliar e vários outros proibido de sair de Moscou.

Dois meses antes, outra ridícula ação judicial, instigada pelo canal de TV Russia Today — controlado pelo Estado —, fora movida contra mim, sob a acusação de “difamar um veterano de guerra”, acompanhada de mais uma ordem me proibindo de sair de Moscou. Considerando ilegal a restrição, eu a ignorei e parti para mais essa viagem de investigação à Sibéria. Meus colegas e eu estávamos levando para casa centenas de gigabytes de imagens, inclusive entrevistas com a oposição local e um vídeo com imagens da resi-
dência de um deputado pró-governo numa ilha particular. O material fora criptografado e enviado para um servidor, pronto para edição.

Eu esperava derrotar o partido da situação em Tomsk e pelo menos lhe dar uma dor de cabeça em  Novosibirsk. Dava satisfação pensar que, apesar dos crescentes atos de intimidação — nos dois últimos anos houvera mais de trezentas batidas nos nossos escritórios, homens com máscaras pretas serrando portas, revirando tudo, confiscando telefones e computadores —, só tínhamos nos fortalecido. Naturalmente, quanto mais agradável para mim, mais desagradável para o Kremlin e para o próprio Putin. Deve ter sido isso que o levou a dar a ordem de “iniciar medidas ativas”. Tradicionalmente usada por funcionários da antiga KGB, essa frase continua a ser usada pelo atual FSB* quando escrevem memórias. Livre-se da pessoa e você se livra do problema.

* KGB, Comitê de Segurança do Estado, a temida e brutal polícia secreta da União Soviética, criada em 1954. Com o fim da urss, foi substituída, com a fundação da Federação Russa, em 1991, pelo fsb, o Serviço Federal de Segurança (N. do T.).

Na vida cotidiana, coisas terríveis podem acontecer a qualquer um. O sujeito pode ser devorado por um tigre. Alguém de uma tribo hostil pode atacá-lo, pelas costas, com uma lança. Ao tentar demonstrar suas habilida-
des culinárias ao parceiro ou parceira, você pode amputar um dedo sem querer, ou perder a perna ao usar uma motosserra na garagem, caso não preste atenção. Um tijolo pode cair na cabeça de uma pessoa ou alguém pode despencar de uma janela. Para não falar dos habituais ataques do coração e outras tragédias angustiantes, mas pelas quais normalmente se espera.

Poucos leitores, espero, terão sido atacados por uma lança ou caído da janela, mas é fácil imaginar como seria. Nossa experiência de vida e a observação dos outros nos permitem conceber vividamente tais sensações. Ou pelo menos era o que eu pensava antes de entrar naquele avião.

                                                                          ——————————

Em respeito às convenções das histórias policiais, tentarei relatar tudo que aconteceu nesse dia tão precisamente quanto possível, seguindo o consagrado princípio de que o menor detalhe pode fornecer a chave para desvendar o mistério.

O dia é 20 de agosto de 2020. Estou no meu quarto de hotel em Tomsk. O despertador toca às 5h30. Eu acordo sem dificuldade e vou ao banheiro. Tomo um banho. Não faço a barba. Escovo os dentes. O de-
sodorante roll-on acabou. Esfrego o plástico seco nas axilas e descarto o aplicador na cesta de lixo, onde será encontrado horas depois por meus colegas, que darão uma busca no quarto. Envolto na maior toalha que estava pendurada no banheiro, retorno ao quarto, pensando no que vestir. Cueca, meias, uma camisa. Como sou desses que ficam meio desorientados ao escolher as roupas, encaro por talvez uns dez segundos o conteúdo da minha mala aberta.

Um pensamento constrangedor me passa pela cabeça. E se eu usar a camisa de ontem? Afinal, estarei em casa dentro de cinco horas, e lá vou tomar outro banho e trocar de roupa. Não, pode não ser legal. Um dos
meus colegas pode notar e achar que me comporto como um andarilho qualquer.

O hotel mandou a roupa lavada de volta ontem, então pego meias e uma camisa no pacote. Na mala há cuecas limpas. Visto as roupas e olho para o relógio: 5h47. Não posso perder o avião: é quinta-feira, e sou um escravo das quintas-feiras. Toda quinta, aconteça o que acontecer, entro no ar ao vivo às 20h, dando minha opinião sobre os acontecimentos da última semana na Rússia. A Rússia do Futuro com Alexei Navalny é um dos streams mais populares do país, assistido on-line por 50 a 100 mil pessoas, com mais de 1,5 milhão de acessos depois da postagem. Este ano, a audiência não caiu abaixo de um milhão. (Se não fosse quinta-feira, eu teria permanecido mais alguns dias na Sibéria. Hoje, dois colegas viajarão comigo, e vários outros ficarão para concluir o trabalho.)

São 6h01. Detesto me atrasar, mas como sempre não me lembrei de embalar tudo: meu cinto está jogado na cadeira. Sou obrigado a abrir a mala, colocá-lo lá dentro e me entregar ao exercício conhecido de qual-
quer um que tente fechar uma mala abarrotada. Jogo nela todo o peso do meu corpo, fecho o zíper e imploro mentalmente para que ela não se abra de novo quando eu tirar a mão e parar de pressionar.

Às 6h03, já desci para o saguão do hotel, onde Kira Yarmysh, minha secretária de imprensa, e Ilya  Pakhomov, meu assistente, estão à espera. Entramos no táxi chamado por Ilya e seguimos para o aeroporto. No caminho, o motorista para num posto de gasolina; parece meio estranho, pois normalmente eles abastecem entre um passageiro e outro, mas não penso muito nisso.

No aeroporto nos deparamos com o mesmo esquema estúpido que se encontra em toda parte na Rússia. A pessoa tem que passar por um detector de metais com a bagagem antes mesmo de entrar no prédio. O
que significa enfrentar duas filas e passar por dois controles. Tudo muito lento, e sempre tem um sujeito na frente que esquece de tirar o celular do bolso. O detector apita. Ele também esqueceu de tirar o relógio de pulso. O detector apita de novo. Xingando mentalmente o imbecil, passo pelo portal, e, claro, o escaneador apita. Esqueci de tirar o relógio.

— Desculpe! — digo ao passageiro que está atrás de mim na fila, lendo nos seus olhos exatamente o que eu estava pensando dez segundos antes.

Não vou ficar de mau humor por causa dessas bobagens. Daqui a pouco estarei em casa e passarei o fim de semana com a minha família. Que sensação maravilhosa.

Kira, Ilya e eu ficamos parados no meio do terminal, um clássico grupo em viagem de negócios nas primeiras horas da manhã. Ainda temos uma hora até a decolagem. Olhamos ao redor, tentando imaginar o que fazer
até o embarque ser anunciado.

— Por que não tomamos um chá? — sugiro. E é o que fazemos.

Eu devia ter tomado meu chá com mais elegância, pois, três mesas adiante, há um sujeito que está furtivamente gravando um vídeo. Ele vai postar minha figura encurvada no Instagram com a legenda  “Navalny flagrado no aeroporto de Tomsk”, e as imagens serão vistas um número incalculável de vezes e analisadas segundo a segundo. Nelas, uma garçonete se aproxima e me entrega o chá num copo de papel vermelho. Ninguém mais toca no copo.

Vou até uma loja chamada Lembranças da Sibéria e compro balas. Quando vou pagar, tento imaginar uma piada para o momento em que presentearei minha mulher, Yulia, ao chegar em casa. Mas não me ocorre
nada. Não faz mal, vou pensar em algo.

O embarque é anunciado, e às 7h35 apresentamos nossos passaportes e entramos no ônibus que nos levará até o avião, 150 metros adiante. O voo está lotado, e há certo alvoroço no ônibus. Um sujeito me reconhece e pede uma selfie. Claro, sem problemas. Em seguida, outras pessoas perdem a inibição e mais umas dez vêm na minha direção para conseguir uma foto. Dou um sorriso alegre para as fotos e, como sempre nesses momentos, fico me perguntando quantas dessas pessoas realmente sabem quem eu sou e quantas decidiram tirar uma foto só para o caso de eu ser alguém. Uma perfeita ilustração da definição de subcelebridade proposta por Sheldon Cooper em The Big Bang Theory: “Quando você explica quem
ele é, muitas pessoas o reconhecem.”

Quando entramos no avião, mais fotografias, e Kira, Ilya e eu estamos entre os últimos a ocupar os assentos. Isso me deixa ansioso, pois trago uma mochila e uma mala que precisam ser acondicionadas. E se todos
os compartimentos de cima estiverem ocupados? Não quero ser aquele triste passageiro que percorre a cabine pedindo à tripulação que encontre um lugar para a sua bagagem de mão.

No fim, dá tudo certo. Há espaço para a mala, e eu acomodo a mochila entre meus pés, no assento da janela. Meus colegas sabem que prefiro muito mais me sentar à janela, para que eles me isolem de qualquer um que possa querer discutir a situação política da Rússia. Em geral, gosto de conversar com as pessoas, mas não num avião. Sempre tem muito barulho ambiente, e não me agrada a ideia de um rosto a apenas 20 centímetros de distância gritando:

— Você investiga corrupção, certo? Pois bem, deixe eu lhe contar a minha história.

A corrupção é estrutural na Rússia, e todo mundo tem uma história para contar.

Meu estado de espírito, que já era bom, fica melhor ainda por ter pela frente deliciosas três horas e meia de total descontração. Primeiro, vou ver um episódio de Rick e Morty e, depois, ler.

Aperto o cinto e descalço os tênis. O avião começa a rolar na pista. Eu meto a mão na mochila, pego o laptop e os fones de ouvido, abro a pasta Rick e Morty, escolho uma temporada qualquer e depois um episódio. Estou com sorte de novo; é aquele em que Rick se transforma em picles. Adoro.

Um comissário de bordo me olha de soslaio ao passar, mas não me pede para fechar o laptop, como determina uma norma ultrapassada de segurança aérea. É uma das vantagens de ser uma subcelebridade. As coisas hoje estão indo mesmo muito bem. 

Mas aí não vão mais.

Graças ao gentil comissário, sei exatamente em que momento senti que algo estava errado. Muito tempo depois, passados 18 dias em coma, 26 na uti e 34 no hospital, calcei luvas, limpei meu laptop com álcool, abri e descobri que haviam transcorrido 21 minutos do episódio.

É preciso um acontecimento realmente extraordinário para me fazer parar de assistir a Rick e Morty — uma turbulência não seria suficiente —, mas estou olhando para a tela e não consigo me concentrar. Um suor frio começa a pingar da minha testa. Alguma coisa muito, muito estranha e errada está acontecendo. Sou obrigado a fechar o laptop. Um suor gelado escorre pela minha testa. É tanto que eu peço um lenço de papel a Kira, que está sentada à minha esquerda. Ela está absorta em seu e-book e, sem levantar os olhos, pega um pacotinho de lenços na bolsa e me entrega. Eu uso um. Depois outro. Sem dúvidas, há algo errado. Nunca senti nada parecido em toda a minha vida. E eu nem tenho clareza do que está acontecendo. Não tem nada doendo. Só a sensação esquisita de que todo o meu sistema está entrando em colapso.

Concluo que deve ser enjoo por ficar olhando para a tela durante a decolagem. Digo meio hesitante a Kira:

— Tem algo errado. Será que você pode conversar um pouco comigo? Preciso me concentrar no som da voz de alguém.

É um pedido estranho, mas, depois da surpresa inicial, Kira começa a me falar do livro que está lendo. Eu ouço o que ela diz, mas demanda muito de mim. Minha concentração se esvai a cada segundo. Passados
uns dois minutos, só consigo ver os lábios dela se movendo. Ouço sons, mas não entendo o que é dito, embora Kira tenha me contado mais tarde que aguentei cerca de cinco minutos, murmurando “Ã-hã” e “A-há” e até pedindo que ela esclarecesse o que havia dito.

Um comissário de bordo aparece no corredor com um carrinho — bebidas. Tento pensar se deveria beber um pouco de água. Segundo Kira, ele ficou parado ali, esperando. Olho para ele em silêncio durante dez
segundos, até que ele e ela começam a ficar constrangidos.

— Acho que preciso mesmo me levantar — digo, enfim.

Resolvo lavar o rosto com água fria para me sentir melhor. Kira cutuca Ilya, que está dormindo no assento do corredor, e eles me deixam passar. Estou apenas de meias. Não que não tivesse forças para calçar os tênis de novo; só não quero me dar ao trabalho no momento.

Felizmente o banheiro está livre. Cada gesto nosso requer reflexão, embora habitualmente não notemos. Preciso fazer um esforço consciente para entender o que está acontecendo e o que eu devo fazer em seguida. Aqui é o banheiro. Preciso encontrar a tranca. Há coisas de cores diferentes. Isto parece ser a tranca. Ela desliza nessa direção. Não, na outra. Ok, ali está a torneira. Tenho que pressioná-la. Como faço? Minha mão. Onde está minha mão? Aqui. Água. Tenho que jogá-la no rosto. No fundo da mente há apenas um pensamento, que não requer nenhum esforço nem deixa espaço para mais nada: Não aguento mais. Enxáguo o rosto, sento no vaso e me dou conta pela primeira vez: esse é meu fim.

Eu não pensei “acho que esse é meu fim”. Eu sabia que era.

Experimente tocar o seu punho com um dedo da outra mão. Você sen te algo porque o corpo libera acetilcolina, e um sinal nervoso transmite ao cérebro a informação do seu gesto. Você vê com os olhos e identifica com o tato. Agora faça o mesmo de olhos fechados. Você não vê seu dedo, mas distingue facilmente quando está tocando no punho e quando não está. Isso acontece porque, depois que a acetilcolina transmite um sinal entre as células nervosas, seu corpo secreta colinesterase, uma enzima que interrompe o sinal uma vez que ele já fez seu trabalho. Ela destrói a acetilcolina “usada” e, com ela, qualquer traço do sinal transmitido ao cérebro. Se isso não acontecesse, o cérebro não pararia de receber sinais sobre o toque no punho repetidamente, milhões de vezes. Seria semelhante a um
ataque distribuído de negação de serviço (ddos, na sigla em inglês) contra um website: clique uma vez, e o site se abre; clique um milhão de vezes por segundo, e ele entra em colapso.

Para enfrentar um ddos, você pode recarregar o servidor ou instalar outro mais potente. Em se tratando de seres humanos, não é tão simples. Bombardeado por bilhões de sinais falsos, o cérebro fica desorientado,
incapaz de processar o que está acontecendo, e acaba desligando. Depois de algum tempo, a pessoa para de respirar, pois essa função, no fim das contas, também é controlada pelo cérebro.

É assim que atuam os agentes nervosos.

Faço mais um esforço e mentalmente checo meu corpo. Coração? Não dói. Estômago? Tudo certo. Fígado e outros órgãos internos? Nem o mais leve desconforto. No cômputo geral? Terrível. É demais, e estou  morrendo.

Com dificuldade, jogo água no rosto de novo. Quero voltar ao meu assento, mas não acho que seja capaz de sair sozinho do banheiro. Não conseguirei encontrar a tranca. Estou vendo tudo com clareza. A porta está à minha frente. A tranca também. Tenho força suficiente, mas manter a droga da tranca em foco, estender a mão e deslizar a peça na direção certa é muito difícil.

Até que dou um jeito de sair. Tem uma fila de gente esperando, e consigo ver que não estão nada satisfeitos. Acho que fiquei no banheiro mais tempo do que supunha. Não estou me comportando como um bêbado —
não cambaleio, ninguém está apontando para mim. Sou apenas mais um passageiro. Kira me disse depois que me levantei do assento junto à janela de um jeito perfeitamente normal, passando por ela e Ilya sem problemas. Apenas estava muito pálido.

Estou de pé no corredor e digo a mim mesmo que devo pedir ajuda.Mas o que é que vou dizer ao comissário? Nem consigo articular o que está errado ou do que preciso.

Olho para trás na direção dos assentos, mas me volto para o outro lado. Agora estou de frente para a cozinha de bordo, quatro metros quadrados com carrinhos de refeições — o lugar aonde vamos num voo longo quando queremos algo para beber.

Os escritores de verdade são pessoas especiais. Quando me perguntam como é morrer envenenado por uma arma química, duas associações me vêm à cabeça: os dementadores em Harry Potter e os Nazgûl de O senhor dos anéis, de Tolkien. O beijo de um dementador não dói: a vítima apenas sente a vida indo embora. A principal arma dos Nazgûl é sua aterradora capacidade de nos fazer perder a vontade e a força. De pé ali, no corredor, sou beijado por um dementador, e um Nazgûl está por perto. Sinto que sou subjugado pela impossibilidade de entender o que está acontecendo. A vida está se esvaindo, e não tenho força de vontade para resistir. Estou acabado. Com toda força, esse pensamento rapidamente se sobrepõe a
“não aguento mais”.

O comissário de bordo olha para mim com ar de zombaria. Parece o mesmo que fingiu não notar meu laptop. Faço mais um esforço para encontrar o que lhe dizer. Para minha surpresa, consigo:

— Fui envenenado e vou morrer.

Ele me olha sem alarme, surpresa ou sequer preocupação — na verda-
de, com um meio sorriso.

— Como assim? — pergunta.

Sua expressão muda radicalmente ao me ver deitar aos seus pés no chão da cozinha. Eu não caio, não desmorono, não perco a consciência. Mas tenho a sensação incontornável de que ficar de pé ali no corredor é uma tolice sem sentido. Afinal, estou morrendo, e todo mundo — corrijam-me se eu estiver errado — morre deitado.

Estou deitado de lado. Olhando para a parede. Não sinto mais nenhum embaraço ou ansiedade. As pessoas começam a correr, e ouço exclamações alarmadas.

Uma mulher grita no meu ouvido:

— Diga, está se sentindo mal? Está tendo um ataque do coração?

Eu sacudo a cabeça molemente. Não, nenhum problema com meu coração.

Mal tenho tempo de pensar “É tudo mentira, o que dizem sobre a morte”. Minha vida inteira não está passando diante dos meus olhos. Os rostos dos meus entes queridos não aparecem, tampouco um anjo ou alguma luz ofuscante. Estou morrendo, olhando para uma parede. As vozes ficam indistintas, e as últimas palavras que ouço são da mulher gritando:

— Não! Fique acordado, fique acordado.

E, aí, eu morri.

Spoiler: na verdade, não morri.



Fonte: ICL Notícias

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