Por um feminismo transversal, radical e massivo

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Verónica Gago é argentina, doutora em ciências sociais, professora da Universidade de Buenos Aires e da Universidade de San Martín, além de pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas.

Também faz parte do coletivo  Ni Una Menos, que luta contra o feminicídio na América Latina.

Para o livro recém lançado pela editora UBU “Ganhar o mundo – sobre os legados feministas”, que reúne artigos de pensadoras importantes como Silvia Federici, Djamila Ribeiro e Françoise Vergès, Verónica escreve sobre o desejo de teoria no movimento feminista.

Em seu artigo, reflete sobre o que vê como um momento da escalada do movimento feminista, que acontece entre 2017 e 2019, sobre o que considera uma combinação inédita entre radicalidade e massividade e sobre como a pandemia de COVID-19 frea essa escalada, entre outras coisas.

Para a cientista política, o avanço da extrema direita também traz o que chama de um “anti feminismo de Estado” como uma forma sistemática, institucional e financiada publicamente de organizar ataques de ódio e violência contra mulheres, lésbicas, travestis, trans e não-bináries.

Em entrevista exclusiva à coluna, Verónica conta um pouco sobre o que traz no livro e define que a “transversalidade é o que dá aos feminismos sua capacidade expansiva e produz vínculos concretos entre as lutas pela moradia, pela educação, pela saúde, por todo o tecido da reprodução da vida”

Veró, você abre seu artigo dizendo que entre 2017 e 2019 há uma escalada do movimento feminista, sobretudo na América Latina, e coloca o papel importante das greves nesse processo. Pode falar um pouco sobre isso? 

Acho que nesses anos vemos um momento poderoso de mobilizações feministas, em que a greve desempenha um papel importante como um processo transnacional.

Essa sequência inclui, é claro, a luta da maré verde pela legalização do aborto: da Polônia à Argentina (2016-2020), passando pela Colômbia e pelo México. Me parece importante ler esse ciclo de protestos como uma década de inovações em termos organizacionais.

Aqui há toda uma abordagem programática que consiste em elaborar demandas e conceitualizações sobre trabalho doméstico, pensões, cotas de trabalho para travestis e transexuais, dívida pública e doméstica, moradia e aluguéis, trabalho migrante, educação sexual abrangente, justiça reprodutiva.

Propriedade da terra, modelo alimentar, subsídios sociais para famílias monoparentais, anti punitivismo, sindicalismo de reprodução social também entram nessa lista, sem esgotá-la.

É fundamental analisar as mobilizações feministas em suas interseccionalidades férteis e em sua capacidade de produzir inovações organizacionais.

Devemos conectá-las com as revoltas e greves no Equador (2019 e 2022); com a greve nacional e a revolta na Colômbia (2019-2021) e a sequência que vai da greve feminista à explosão no Chile (2017-2019), para citar as mais importantes.

O que significa isso que você chama de uma combinação inédita para o movimento feminista entre massividade e radicalidade que teria ocorrido nesse período?

Acho que foi uma composição singular. Radical porque foi capaz de buscar a ampliação das alianças políticas quando se tratava de ocupar as ruas, mas também de integrar os feminismos em diferentes espaços, não mais como “agendas” ou demandas isoladas, mas como uma forma de transformação social.

Acredito que a massividade foi sentida quando os feminismos se tornaram inescapáveis, quando tiveram um impacto em tudo, desde a linguagem até a forma como pensamos sobre a educação; desde como denunciamos a violência econômica até as formas de combater o racismo e o sexismo na vida cotidiana e nas instituições.

Acredito que dessa combinação de massividade e radicalismo também tenha surgido uma compreensão coletiva de como a violência de gênero funciona como um índice estrutural da violência capitalista e colonial.

Qual é a importância da intersecção entre o feminismo e outros movimentos sociais? Por terra, por educação, por comida, etc? Você acha que isso está acontecendo? Se sim, acha que é algo que acontece em todo o mundo ou mais particularmente na América Latina?

Como disse no início: essa transversalidade é o que dá aos feminismos sua capacidade expansiva e produz vínculos concretos entre as lutas pela moradia, pela educação, pela saúde, por todo o tecido da reprodução da vida.

Na América Latina, isso é muito evidente e é também o que está sendo atacado pelo avanço da ultradireita que busca desmantelar o que essas redes – com todas as suas dificuldades – sustentam como possibilidades de cuidado, dignidade e vida diante da privatização e do empobrecimento.

É claro que hoje há uma multiplicação das frentes de ataque por novas formas de fascismo que também dificultam a vitalidade das lutas: elas estão sendo criminalizadas, perseguidas e também deslegitimadas por uma sensação generalizada de incerteza e insegurança acelerada por um capitalismo catastrófico e uma guerra como a que estamos vendo.

De que maneira a Pandemia de COVID 19 freou essa escalada, na sua percepção?

Entre a pandemia e as vitórias eleitorais da ultradireita, podemos ler uma sequência de reviravoltas contra revolucionárias e capturas do ciclo de protestos populares e transfeministas, de suas provações e apostas.

Na pandemia, investigamos e revelamos três coisas importantes. Primeiro, as mutações cruciais que ocorreram no mundo do chamado trabalho “essencial”, um conceito que se apropria da visibilidade e da legitimidade do trabalho de reprodução social (saúde, educação, apoio em situações de violência de gênero, alimentação, cuidados) para ser superexplorado no momento de emergência global.

Em segundo lugar, uma aceleração do extrativismo financeiro e imobiliário que atinge especialmente mulheres, lésbicas, travestis, trans, não binárias, migrantes e populações racializadas, produzindo especulação predatória sobre moradia, despejos e dívidas.

E, em terceiro lugar, uma reconfiguração na articulação entre a financeirização da vida cotidiana e as economias de plataforma que tomam como cenário privilegiado de extração de recursos e energia o lar, os espaços das tecnologias comunitárias de vínculo social e o trabalho mais precário (remunerado e não remunerado).

Citando Butler, você escreve sobre a importância de não olhar para o corpo a partir da noção de “propriedade privada”. Isso toca tantas coisas, né? Desde o olhar para o corpo a partir de uma visão neoliberal individualista, como da relação com outras vidas não humanas…

Sim, o neoliberalismo em seu estágio financeiro precisa reforçar as bordas proprietárias e individualistas do corpo e, ao mesmo tempo, produzir mais e mais desapropriação.

Parece um paradoxo, mas é um plano: ser o dono de seu corpo, defendê-lo como se fosse sua propriedade, é a oferta neoliberal diante da desapropriação da educação, da saúde, diante do empobrecimento e da destruição do planeta, o que torna nosso corpo comum, coletivo.

É por isso que todas as experiências que propõem outra forma de habitar e experimentar corpos e territórios que não assumem a premissa do individualismo possessivo são vistas como perigosas.

Porque são elas que nos permitem sentir e perceber a interdependência da vida humana e não humana, de nosso corpo com o que o afeta e o torna parte imediata dos processos transindividuais.

E como a atuação tão direta da extrema direita no mundo hoje, atacando direitos das mulheres, LGBTQIA+ e de corpos dissidentes molda ou encontra resistência no movimento feminista hoje? Vivemos tempos de emergência, em que temos que responder rápido, em que direitos podem nos ser retirados a qualquer momento em nome do combate à “ideologia de gênero”, ao “wokismo” etc. Como você vê o movimento feminista atravessando e sendo atravessado por isso?

Hoje vemos que devemos resistir à política da crueldade, ou seja, ao gozo da violência. No caso da Argentina, isso é evidente: a celebração das demissões, o fechamento de espaços de memória e direitos humanos, a criminalização da comunidade mapuche, a repressão aos aposentados e às pessoas em situação de rua, bem como aos migrantes.

Mas vemos que essa crueldade tem um papel fundamental, exemplar e expansivo na violência contra mulheres, lésbicas, travestis, trans e não-bináries: permite que os ataques de ódio proliferem como forma de descarga diária diante da crise econômica que atravessamos.

Acho que é justo falar de um antifeminismo de Estado como uma forma sistemática, institucional e financiada publicamente de organizar essa violência.

 

 





Fonte: ICL Notícias

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