O que é Literatura Negra: Racismo e literatura brasileira em De onde eles vêm, de Jeferson Tenório

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Sobre o quê escreve Jeferson Tenório, autor de quatro romances e ganhador do Jabuti por “O avesso da pele”? A resposta simples é: sobre racismo. Mas talvez não seja tão simples assim.

(Todo mês, eu dou uma aula avulsa de literatura para minhas mecenas. “De onde eles vêm”, de Jeferson Tenório, foi a leitura da aula de 16 de fevereiro de 2025.)

Tenório nasceu no Rio de Janeiro, foi criança para Porto Alegre e hoje vive em São Paulo. Seu primeiro romance, “O beijo na parede”, saiu em 2013 pela pequena editora gaúcha Sulina. O seguinte, “Estela sem Deus”, de 2018, por outra editora gaúcha, a Zouk. Atraiu a atenção da Companhia das Letras, que comprou seu próximo romance antes de estar escrito: “O avesso da pele”, publicado em 2020, vendeu 200 mil exemplares. Finalmente, agora, em 2024, a mesma editora lança “De onde eles vêm”, sua primeira obra depois de se tornar um autor best-seller de referência nacional.

Sobre o quê é “De onde eles vêm”? Segundo a divulgação da editora, talvez querendo promover o ângulo mais polêmico do livro, seria sobre as cotas universitárias. E, sim, as cotas permeiam toda a narrativa. Acompanhamos a chegada dos primeiros alunos cotistas a uma universidade federal gaúcha e tanto seus dilemas para serem aceitos quanto os dilemas dos outro alunos e professores para recebê-los. De onde vêm esses cotistas?, se perguntam, ecoando o título. O que fazer com eles? O que querem? Como acomodá-los? Quem é esse Outro?

De onde eles vêm”, entretanto, é sobre as cotas da mesma maneira que “Moby Dick” é sobre a indústria baleeira.

Primeiras frases, últimas frases

A importância das primeiras frases na literatura já é proverbial. Parafraseando ao avesso outra primeira frase famosa, todas as más primeiras frases se parecem, mas cada boa primeira frase é boa do seu jeito, etc. Por outro lado, poucas últimas frases são lembradas, com raras e honrosas exceções (“Sim!”, diz Molly Bloom, no final de “Ulisses”.)

Na contramão dessa tendência, a obra de Jeferson Tenório demonstra uma preocupação sustentada com últimas frases de impacto. Em seu primeiro romance, o menino João, de 11 anos, depois de muito sofrimento, termina dizendo: “É preciso não ter medo.”

O romance seguinte, narrado por uma moça entre 13 e 18 anos, conclui no momento em que ela abandona a casa do namorado com quem morava e se joga na vida: “Sofremos o que tínhamos de sofrer”, diz Estela. “Não precisávamos mais ter medo de mais nada. A tristeza nos absolveria de Deus.” Frases sofridas, mas esperançosas, que dialogam com o final do livro anterior.

Na sequência, em “O avesso da pele”, o jovem narrador Pedro, ainda adolescente, tem seu pai morto injustamente em uma abordagem da Polícia Militar. Depois de reconhecer o corpo, ele afirma: “Vou em frente, na direção do Guaíba. Tenho Ogum em minhas mãos porque agora é a minha vez.” No meio de uma tragédia maior que todas as dos livros anteriores, também existe uma nota triunfal inédita.

Nos três romances, as últimas frases chamam ainda mais atenção por estarem em um tom muito mais esperançoso do que as obras em si. É quase como se Tenório tivesse decidido que, depois de mostrar tantas dores e horrores, não podia permitir que suas pessoas leitoras fechassem os livros sem lhes oferecer algum consolo, por menor que fosse. Mas, no contexto geral das três obras, essa esperança poderia soar como algo forçada e meio vazia, especialmente em comparação aos horrores que a pessoa leitora tinha acabado de ser exposta.

Finalmente, em “De onde eles vêm”, temos uma última frase igualmente memorável por sua luminosidade esperançosa, mas, dessa vez, o romance inteiro veio nos preparando para ela em um crescendo de otimismo, de força, de potência.

“A vida é boa”, conclui o narrador Joaquim, universitário cotista, na última frase. “A vida é boa” também é o título da quarta e última parte da obra, onde a vida vai progressivamente melhorando para o protagonista. Não seria um livro de Tenório, porém, se essa última frase não estivesse em um contexto irônico e agridoce. Imediatamente antes, a penúltima frase afirma: “Dois mil e vinte será um ano promissor, pensei.” Pobre Joaquim. Mal sabe o que vai enfrentar. Mas nós sabemos.

Qual é o tema da literatura negra?

Como definir literatura negra? É a literatura escrita por pessoas negras ou é a literatura sobre temas negros? Nesse caso, quais são esses tais temas negras? Racismo nas suas mais diversas acepções? Só isso? Podem as pessoas negras escrever sobre outros temas? Quando um autor negro não escreve sobre racismo… é uma fuga ou é uma libertação?

O avesso da pele” foi recebido como uma obra-prima sobre racismo no Brasil. Tenório, entretanto, tentou pautar leituras que fugissem um pouco desse tema. Em uma entrevista, por exemplo, afirmou que não é um livro sobre o racismo, mas sobre a complexidade de relações humanas atravessadas pelo racismo.” Em uma de suas colunas para o UOL, onde escreve, definiu o romance como “uma reflexão sobre o letramento racial de jovens negros.”

Para Tenório, “toda pessoa negra é tensionada pela necessidade de se colocar politicamente devido a sua cor e, ao mesmo tempo, não se deixar ser reduzida a ela.” Daí que reduzir uma obra literária complexa somente à questão racial também é reduzir o seu valor estético.

O novo romance, “De onde eles vêm”, parece ser a resposta de Tenório à essas questões. Depois de escrever aquele que é, convenhamos, um dos grandes romances brasileiros sobre racismo, ele dá um passo atrás, amplia seu leque temático e, sem abrir mão de continuar expondo nossas feridas raciais, também nos mostra que não são as únicas feridas que temos. Lauro, melhor amigo do narrador Joaquim, também cotista e preto retinto, é gay. A tia de Joaquim, Julieta, é uma empregada doméstica já começando a ficar idosa e que compartilha com Joaquim os cuidados com a avó. A medida em que Joaquim se envolve com a universidade, porém, os cuidados com a avó acabam sobrando somente para Julieta. Afinal, ela é mulher, não? Colorismo, homofobia, etarismo, misoginia, capacitismo: definitivamente “De onde eles vêm” não é um livro apenas sobre racismo, mas sobre a Outrofobia de modo geral.

O novo romance parece estar sempre em um diálogo profícuo com as questões levantadas nos livros anteriores. Em um sarau universitário, uma poeta negra de repente se levanta e grita “Negra!” Todos se assustam, olham para ela e, na sequência, ela declama “Gritaram-me negra”, da afroperuana Victoria Santa Cruz, um poema onde a palavra “negra” é gritada 19 vezes. A performance é aplaudida efusivamente e alguém comenta que aquela era “a verdadeira poesia negra.”

Pouco depois, outra personagem comenta que a poesia negra pode e deve ser mais complexa que isso: “Tenho medo de que nos reduzam a um jeito de expressão poética somente pelo grito, pela manifestação, pela reivindicação, pelo protesto, como se não pudéssemos fazer literatura de outro jeito.” E responde o narrador: “Talvez a gente ainda tenha que continuar gritando pra sermos ouvidos.”

Afinal, um autor negro pode (deve?) falar de outros temas que não o racismo? Existe essa liberdade? Ou, como diz o narrador Joaquim em outro momento:

“[Eu] percebia que aquele sentimento de liberdade de poder fazer o que eu quisesse da minha vida era falso, ou só funcionava quando eu estava à beira de um penhasco.”

Todos os livros de Tenório são, fundamentalmente, romances de formação, narrados por personagens progressivamente mais velhos, desde o menino João, de 11 anos, na obra de estreia “O beijo na parede”, até o universitário Joaquim, do romance mais recente “De onde eles vêm”. Esse último talvez contenha a chave de leitura de toda a obra de Tenório:

“As histórias de aprendizagem são sempre as mesmas: antes você não sabe, depois passa a saber. A diferença entre as pessoas é justamente o que fazemos com o que a gente passou a saber.”

Então, podemos nos perguntar: o quê o narrador Joaquim, o universitário cotista em “De onde eles vêm”, passou a saber no final do romance que não sabia no começo? A resposta, talvez, entre muitas outras possíveis, está na última frase:

“A vida é boa.”

Todos os três romances anteriores de Tenório são marcados pela raiva, pelo amargor, pelo ressentimento. Diante de tudo o que passaram seus protagonistas-narradores João, Estela e Pedro nas mãos do racismo estrutural brasileiro, ressentimento é o mínimo que se espera. Joaquim, o protagonista-narrador de “De onde eles vêm”, enfrentando os desafios de fazer parte da primeira geração de cotistas universitários, não seria diferente. Em dado momento, Joaquim confessa:

“Eu me sentia incapaz de contestar minha condição e … preferia me acomodar. Havia … um certo prazer no meu sofrimento. Apeguei- me à solidão e à autopiedade. Como se aquele lugar de resignação e apatia me trouxesse algum tipo de recompensa interna. … A verdade é que éramos negros e estávamos todos fodidos, cumprindo nossa sentença de ter uma vida fodida.”

Outros protagonistas de Tenório estiveram nessa mesma situação. Estela parece que vai se libertar, mas o romance termina quando ela dá o primeiro passo nessa direção. O pai de Pedro, de “O avesso da pele”, é morto pela polícia no momento em que finalmente reencontra o sentido da docência em literatura. Para essas personagens, os caminhos à frente sempre parecem nebulosos ou bloqueados. Mas não em “De onde eles vêm”. Assim como Tenório se formou o primeiro cotista racial da UFRGS, Joaquim também consegue cavar para si um espaço não só de esperança, mas de felicidade. Com a ajuda da literatura.

No auge do desespero, Joaquim se ressente até dela: “Pela primeira vez, senti raiva da literatura e dos livros. Sentia-me enganado. A arte havia me passado a perna. Eu estava magoado com a poesia e com tudo que ela me prometera.” Mas, depois, se dá conta que a “a literatura estava me mantendo vivo sem que eu soubesse.” Por fim, percebe que “minha luta era defender o meu direito à alegria.”

E assim, na descoberta de que “a vida é boa”, nessa nota de alegria e esperança, para o personagem, para o autor, para nós pessoas leitoras, termina “De onde eles vêm”.

Mas, afinal, sobre o quê escreve Tenório? Qual é o tema de “De onde eles vêm”?

Quando pessoas brancas escrevem sobre suas experiências, ninguém diz que estão escrevendo sobre a branquitude. “O estrangeiro”, de Camus, é famoso por ser “um romance existencial”, não como a história de um branco que matou um árabe sem motivo. Já “Filho nativo”, de Richard Wright, escrito pouco antes e tão existencial quanto, é considerado “um romance sobre racismo nos Estados Unidos”.

A obra de Tenório fala sobre racismo, mas só porque o racismo atravessa necessariamente a vida de todas as pessoas do Brasil, brancas ou negras. Mas, na verdade, são romances de formação, onde pessoas constroem vidas possíveis em uma sociedade que os vê como Outro.

Jeferson Tenório tem construído uma carreira invejável na literatura brasileira. Ao longo de dez anos, cada um de seus quatro superou o anterior em qualidade. O excelente “O avesso da pele” poderia ter sido seu auge, mas “De onde eles vêm” é ainda melhor. Vale a pena a leitura.

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