O julgamento

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O Brasil vai fazer um julgamento histórico. Julgo que é a primeira vez que na América Latina se julga uma tentativa de derrubar o regime democrático pela força. Julgo que é a primeira vez que vão a julgamento altas patentes militares. E julgo também que é a primeira vez que um antigo presidente da República (que é ainda uma das principais lideranças políticas do país) é acusado de promover um golpe de estado. Muitas primeiras vezes. O que aconselha juízo e prudência — muita prudência.

Já aqui escrevi que não vejo outro remédio. Sou, por princípio, avesso à judicialização da política e não gosto de ver juízes decidir assuntos que exigem juízos sociais que só competem aos eleitos pelo povo. Não gosto de ver os tribunais resolver questões como as do uso de drogas, da descriminalização do aborto ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nos casos em que estas matérias foram decididas por juízes (com base em interpretações constitucionais) e não por parlamentares, foram, em geral, mal decididas. Uma das partes nunca reconheceu legitimidade a essas decisões.

Todavia, neste caso não estamos a falar de políticas, mas de crimes. Não estamos a falar de diferenças de opinião, mas do uso da violência para torcer a vontade popular livremente expressa nas urnas. Não, o Brasil não tinha alternativa. Se o Estado brasileiro não julgasse os golpistas estaria, de certa forma, a legitimar a violência enquanto método político. Esta é também a principal razão pela qual julgo que a anistia parlamentar não é boa solução. Sem ação judicial o Estado brasileiro tornar-se-ia, ele próprio, “dono” das políticas que levaram ao 8 de janeiro. Já bastou o golpe de 1964.

Isto dito, não posso nem vou passar ao lado do elefante na sala. Este julgamento é de grande delicadeza política, o que exige que todos os rituais do devido processo legal sejam cumpridos sem falhas. Todas as garantias devem ser observadas com escrúpulo. E aqui começam os problemas. Ao ler o que para aí se escreve parece que há ainda quem não percebeu que as liberdades individuais não são liberdades burguesas. Que as garantias constitucionais representam limites ao poder estatal — nele incluindo o poder judicial.

Os que agora estão acusados são inocentes até se provar a sua culpa em tribunal. O direito de defesa deve ser observado de forma ampla e sem preocupações de oportunidade ou de tempo político. Estes dois pontos podem ainda ser garantidos — e espero que o sejam. Todavia, infelizmente, há duas outras questões em que, em consciência, não posso acompanhar o Supremo Tribunal. Sobre a primeira já me pronunciei anteriormente e nada mais tenho a dizer, a não ser reafirmá-la — a sombra da coação na obtenção da delação premiada de Mauro Cid deveria levar à sua eliminação como prova. A futura decisão judicial, qualquer que ela seja, ganharia em legitimidade se isso acontecesse.

A segunda questão é para mim mais difícil de expressar e talvez por isso seja maior a obrigação de a deixar registrada. Não, não estou de acordo que juízes que foram advogados de Lula da Silva ou que pertenceram ao seu governo devam julgar este caso. A questão tem a ver com a importantíssima questão da imparcialidade judicial. Atenção: não estou a falar da imparcialidade subjetiva, da qual não duvido, mas da imparcialidade objetiva tal como é percebida pelos outros, não pelos próprios. Tenho particular estima pessoal pelo ministro Cristiano Zanin e grande admiração pelo ministro Flávio Dino, que considero uma das mais esclarecidas mentes jurídicas brasileiras. Mas não estou de acordo. E lamento profundamente não estar de acordo com eles neste momento tão importante para o Brasil.

A mesma questão da imparcialidade é válida para o juiz Alexandre de Moraes, que esteve envolvido no inquérito e na investigação à tentativa de golpe. É próprio do sistema penal democrático separar quem investiga de quem julga — o que não me parece ser o caso. Também por essa razão a Justiça brasileira ganharia em ter outro juiz a julgar este caso tão sensível. Como já disse, julgo que o tribunal andou bem quando aceitou a denúncia e decidiu julgar o caso.

Infelizmente, não acho que as coisas tivessem começado bem. Talvez acabem melhor. Pronto, está dito. Bon courage.

 



Fonte: ICL Notícias

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