Nem vem que não tem: Wilson Simonal e Sarah Vaughan – II

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Conjunto da obra

 

Hora de retornar ao vídeo mais completo, de aproximadamente 23 minutos. Você já o viu, tenho certeza.

Agora, tudo fica mais nítido. Graças ao contrato com a Shell, Wilson Simonal havia obtido um espaço próprio no programa de Flávio Cavalcanti, que, em certo momento, aparece no fundo da cena, talvez preocupado com o desembaraço do artista, autêntico mestre do palco.

No início era o verbo e o suingue de Simonal, que entra em cena, com um sorriso confiante e interpreta canção de sua autoria, “Cada um que cumpra o seu dever”. Letra incerta que tanto poderia ser uma piscadela para a ditadura militar,

Seja no esporte, medicina, educação

Cada um cumpra com o seu dever

Seja tua tia, seu amigo, seu irmão

Cada um cumpra com o seu dever

Seja brigadeiro, cabo velho ou capitão

Cada um cumpra com o seu dever

quanto, pelo contrário, uma pedra no sapato da ordem estabelecida pela equivalência estabelecida entre diversos, embora não necessariamente contrários, como se um princípio de carnavalização subvertesse o tom aparentemente bem-comportado da música,

Seja bem casado, desquitado, solteirão

Cada um cumpra com o seu dever

Seja macumbeiro, muçulmano ou cristão

Cada um cumpra com o seu dever

Seja na cultura, pé no taco, intuição

Cada um cumpra com o seu dever

A interpretação sublinha essa possível ambiguidade, intensificada pelo arranjo do maestro Erlon Chaves, grande amigo, irmão de Wilson Simonal. À frente da Banda Veneno, cujos metais marcaram época na música brasileira, Erlon Chaves compunha uma dupla única com o artista: dois homens negros, mestres absolutos em seus ofícios, em posição artística e social de destaque, e sem nenhuma intenção de aceitar qualquer tipo de tratamento que não fosse o que eles mereciam em virtude de seu talento excepcional.

(Erlon Chaves e Wilson Simonal sempre souberam cumprir o dever que lhes coube numa sociedade racista e desigual como a brasileira.)

Concluída a primeira atração, o artista gira no palco e começa a cantar “Happy Day”. Sozinho. Até que Sarah Vaughan aparece no palco e os artistas ensaiam o primeiro dueto e seu entrosamento não poderia ser melhor. Logo depois, principia a entrevista marota conduzida por Simonal.

Reconstruo assim a cena descrita nos dois artigos anteriores.

Hora de seguir adiante.

E depois?

Ao final da entrevista-paródia, a célebre interpretação de “The Shadow of your Smile”. Ao final, se beijam e em seus sorrisos se descobrem membros da mesma família de artistas. Imagino Sarah Vaughan interpretando a canção de Wilson Simonal, “Tributo a Martin Luther King”:

Sim, sou um negro de cor

Meu irmão de minha cor

O que te peço é luta sim, luta mais

Que a luta está no fim

 

Cada negro que for

Mais um negro virá

Para lutar

Com sangue ou não

Com uma canção

Também se luta irmão

Ouvir minha voz

Oh yes!

Lutar por nós

 

A última música, “Time after Time”, conclui num ensaio jazzístico que evoca a arte de Elza Soares.

(Um concerto com os três!)

Sarah Vaughan se despede, encantada. Então, depois de brincar com o sucesso de Ataulfo Alves e Haroldo Barbosa, “De conversa em conversa”, com Erlon Chaves ao pandeiro, chega o momento máximo de subversão da usual hierarquia no mercado internacional da arte e não apenas da música popular. São os dois últimos minutos do vídeo. Simonal interpreta um grande sucesso, “Alfie”, de Burt Bacharach, não sem antes tirar um sarro da música:

Então, por exemplo, “Alfie” é uma música bacana do Bacharach: gostosa, o som é bom para cantar. Mas se você traduz a mesma interpretação, e traduz ao pé da letra, fica um lixo.

Simonal bota pra quebrar na performance da música no original: a plateia vem abaixo com o virtuosismo de sua voz. Destaque-se a ousadia do gesto: a interpretação, digamos, “definitiva” da canção de Bacharach pertencia justamente a uma performance inesquecível de Sarah Vaughan. De imediato, após cantar em inglês, Simonal “traduz” malandramente a letra e o resultado é hilariante:

O que é tudo isto sobre, Alfredo?

Isto é apenas para o momento em que nós vivemos?

O que é tudo isso sobre quando estou sem você, Alfredo?

 

(Etc. etc. etc.!)

Versão pilantra da antropofagia, Oswald de Andrade e Wilson Simonal teriam muito a conversar.

Contudo

Estamos aqui em setembro de 1970 e nem o céu parecia ser um limite tangível para o talento de Wilson Simonal. Em agosto do ano seguinte, sua carreira começou a acabar devido ao terrível caso envolvendo seu ex-contador, Raphael Viviani, que, a mando do artista, foi preso e torturado por 24 horas nas dependências do DOPS, a fim de confessar um desvio financeiro que não havia feito. Condenado em 1974 a 5 anos e 4 meses de prisão por extorsão mediante sequestro, ficou preso por uma semana e cumpriu o resto da pena em liberdade.

A carreira de Simonal, contudo, jamais se libertou desse crime, assim como da suspeita de ter sido colaborador dos órgãos de repressão durante a ditadura militar.

 

(And what’s it all about, Alfie?

Is it just for the moment we live?)



Fonte: ICL Notícias

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