Mulheres que fogem da violência encontram recusa e abandono em Florianópolis

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Por Adriana Amâncio e Mariana Rosetti 

Os segundos marcados pelos ponteiros do relógio podem significar a diferença entre a vida e a morte para uma mulher vítima de violência doméstica. Tão essencial quanto o socorro no ápice do ciclo agressivo é o funcionamento ágil, integral e acolhedor da rede de proteção quando a vítima — ferida física e psicologicamente — decide romper o silêncio, denunciar ou fugir do agressor. É nesse momento crítico que o acolhimento deve funcionar como um oásis no deserto: a esperança concreta de segurança e recomeço.

Foi isso que Judith* e Rita* buscaram em Florianópolis. Munidas de coragem e esperança, deixaram tudo para trás — casa, emprego, vínculos e os próprios agressores — levando nos braços seus filhos pequenos. Fizeram o que se espera de uma mulher em situação de violência: denunciaram e buscaram ajuda. Mas ao chegarem à capital catarinense, encontraram portas fechadas.

Documentos obtidos com exclusividade pelo ICL Notícias mostram que a Prefeitura de Florianópolis recusou pelo menos dois acolhimentos de mulheres vítimas de violência, justificando que elas não eram moradoras da cidade. A responsabilidade deste serviço é de Bruno Souza (PL), que está à frente da Secretaria de Assistência Social.

Secretário municipal de Assistência Social de Florianópolis, Bruno Souza

Secretário municipal de Assistência Social de Florianópolis, Bruno Souza

Mesmo as mulheres que são aceitas, encontram problemas. O ICL Notícias teve acesso a relatos preliminares de uma inspeção feita na sede do Projeto Amadas, principal serviço de acolhimento às mulheres em situação de violência,  pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Gênero da Câmara Municipal de Florianópolis. Uma das fontes ouvidas afirma ter visto problemas com a oferta de alimentos, equipe profissional insuficiente e  fiação elétrica precária.

Ilha da Magia

Após sofrer um episódio severo de violência física, Judith pegou Catarina*, a filha com apenas 7 meses de vida, e deixou o companheiro. Já tinha sido vítima dele antes, mas, por não ter independência financeira, ajuda de familiares e ainda estar no puerpério, demorou a buscar ajuda. Seu recomeço, finalmente, estava em outro município: Florianópolis.

Ao chegar na cidade, em 3 de fevereiro, usou o pouco dinheiro que tinha para pagar a pernoite de um hotel simples. No dia seguinte, sem mais recursos e com a filha no colo, procurou ajuda da assistência social e foi encaminhada ao Espaço Acolher, no antigo Aeroporto Hercílio Luz. O equipamento recebe demandas urgentes e acolhe pessoas em situação de vulnerabilidade por, até, 48 horas.

Mas Judith não tinha para onde ir após os dois dias. O município onde vivia com o agressor não possui abrigo ou qualquer política de acolhimento institucional para mulheres vítimas de violência e, além disso, sabia o risco que corria ao voltar. Era ali, na Ilha da Magia, que queria se estabelecer: conseguir uma vaga na creche para a filha, arrumar um trabalho e “sair do buraco”, que ele a colocou.

Se Judith fosse moradora da capital catarinense, após 48 horas, poderia ser encaminhada ao principal serviço de acolhimento institucional: o Projeto Amadas, casa-abrigo destinada a oferecer proteção temporária e segura para mulheres e seus filhos em risco iminente, conforme prevê a Lei Maria da Penha.

Para Judith, contudo, a assistência social informou que o acolhimento definitivo na Casa Amadas não seria possível, já que ela não era moradora da cidade. O Projeto Amadas, administrado pela associação cristã Nurrevi, tem como responsabilidade fornecer moradia provisória, alimentação, apoio psicossocial e encaminhamentos a serviços de saúde, educação, trabalho e justiça.

A negativa consta em um documento de Medida Protetiva de Urgência, obtido pela reportagem do ICL Notícias, elaborado pela Defensoria Pública. Nele, a defensora Anne Teive aponta que a equipe do Espaço Acolher “deixou claro que só pode mantê-la em suas instalações por, no máximo, 48 horas”. Além disso, que Judith receberia o Bolsa Família em 20 dias, e que precisava  “de acolhimento apenas durante o mês de fevereiro, para si e para a filha bebê”.

Além da MPU, a defensora pede o “acolhimento imediato na casa Amadas” da mulher e da filha, reforçando que, segundo informação prestada pela assistência social, “o acolhimento da requerente na casa-abrigo do município (Amadas) não seria possível porque a autora não residiria nesta municipalidade”. Dias depois, o órgão faria um novo pedido à Justiça, a partir de uma situação semelhante, em que o acolhimento também foi negado.

Já Rita* fugiu para Florianópolis após seis anos sofrendo violência doméstica. Suportou ameaças, agressões psicológicas e o medo constante — agravado pelo fato de seu companheiro estar envolvido com tráfico e uso de drogas. Em junho de 2024, após mais um episódio violento, registrou um boletim de ocorrência e conseguiu uma medida protetiva. Mas a proteção não durou muito: em dezembro, ele voltou a ameaçá-la. No início de fevereiro, disse que a mataria.

Foi quando Rita entendeu que não podia mais esperar. Assustada, pediu demissão do trabalho, pegou o filho e saiu às pressas rumo a Florianópolis, por não ter rede de apoio na cidade que morava, onde poderia ficar ainda mais vulnerável. Com medo de voltar para a cidade de origem, Rita pediu abrigo, já que não tinha para onde ir. Chegou à capital catarinense buscando segurança – mas encontrou um sistema alheio às suas necessidades.

No pedido de acolhimento de Judith, a defensora pública foi categórica: “diante desse contexto de hipervulnerabilidade, considerando que a autora se encontra, com sua filha (e, por assim dizer, única família), em Florianópolis, não pode o município se eximir da obrigação de acolhê-la, ainda que temporariamente, sob o argumento da territorialidade”.

O documento diz que a postura da Prefeitura “significa dizer, em última análise, que a requerente deveria retornar para o local de onde fugiu, o local identificado com o episódio de violência, onde estará sob as ameaças do agressor, o local com o qual não possui maiores vínculos (lá residindo por apenas quatro meses, sempre em casa cuidando da filha bebê)”.

Trecho do documento de Medida Protetiva de Urgência feito pela Defensoria Pública de Santa Catarina, que pedia o acolhimento de Ruth e sua filha

Trecho do documento de Medida Protetiva de Urgência feito pela Defensoria Pública de Santa Catarina, que pedia o acolhimento de Ruth e sua filha

Ambas conseguiram acolhimento após a judicialização. Para especialistas, contudo, o argumento da territorialidade tem servido como ferramenta de exclusão. A vereadora Carla Ayres (PT) resume: “a gente tem visto que a política da atual gestão é uma política higienista, que quer tirar da cidade as pessoas em situação de rua, que quer impedir que pessoas de fora acessem os serviços. Então, a questão da territorialidade acaba sendo usada como uma desculpa pra não acolher quem precisa”, defende.

A burocracia imposta a essas duas mulheres sugere dois caminhos: retornar para o lugar que originou a violência ou irem para as ruas. Esta última condição poderia relegá-las a sofrerem novas formas de violência. Dados mostram que 60% da população em situação de rua na capital catarinense está na cidade há menos de seis meses. Ou seja, trata-se majoritariamente de uma população migrante, composta também por mulheres que fogem da violência e buscam reconstruir a vida em outro território.

É uma dupla vulnerabilidade: por serem mulheres e por estarem em situação de rua. Entre 2015 e 2022, embora representassem apenas 10% da população em situação de rua em Santa Catarina, elas foram vítimas de 33% dos casos de violência, segundo análise do Sistema de Informação Observa DH. Em Florianópolis, o risco é ainda maior: apesar de serem minoria, mulheres concentraram 50% dos registros de violência em situação de rua no mesmo período.

A violência contra a mulher em números

Números levantados pelo ICL Notícias revelam que a violência contra a mulher salta aos olhos em Florianópolis. Março de 2024, mês historicamente marcado por campanhas de conscientização sobre os direitos das mulheres, foi também o mais violento do ano em Florianópolis: 478 ocorrências  foram registradas apenas nesse período, segundo o Observatório de Violência contra a Mulher.

No ano, foram 4.296 boletins de ocorrência, sendo 1.795 por ameaça, 741 por injúria e 32 por estupro. Três feminicídios foram registrados, todos cometidos com arma branca. Dois dos autores já tinham passagens anteriores pela polícia. Também foram solicitadas 1.706 medidas protetivas.

Em Florianópolis, os dados de 2025 indicam que esse tipo de crime segue o mesmo ritmo alarmante do ano anterior. Segundo a mesma fonte de dados, apenas nos dois primeiros meses de 2025, já foram computadas 712 ocorrências — o que representa 17% do total anual anterior. O número de estupros neste período inicial já corresponde a quase 20% de todos os casos registrados no ano passado. A lesão corporal dolosa — agressão com intenção — continua sendo o segundo crime mais frequente, atrás apenas das ameaças.

Em janeiro, o Tribunal de Justiça concedeu 276 medidas protetivas; em fevereiro, esse número caiu drasticamente para 132, menos da metade. A repetição dos padrões de violência não representa estabilidade: revela a falência das políticas públicas de prevenção, acolhimento e enfrentamento, que seguem ineficazes para proteger, de fato, as mulheres em situação de risco.

Precariedade e falta de pessoal

Os números da violência contra a mulher destoam das condições em que se encontra o principal serviço de acolhimento às mulheres em situação de violência: o Projeto Amadas. Novos problemas se somam aos velhos quando o assunto é acolher mulheres violentadas. Na última terça-feira (15), membros da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Gênero da Câmara Municipal de Florianópolis visitaram o Amadas para averiguar as condições da casa na nova gestão.

Os parlamentares encontraram o espaço sem equipe profissional suficiente na cozinha, sendo que as próprias acolhidas preparam as refeições. Na dispensa, faltam alimentos essenciais como o arroz e sobram ultraprocessados, como bolacha, biscoito e açúcar. Essas são algumas das observações feitas pela vereadora Carla Ayres (PT), vice-presidente da comissão, que falou à reportagem do ICL Notícias, logo após visitar a casa abrigo.

Na casa, aparelhos de ar condicionado estavam instalados, mas desligados, contando apenas com ventiladores. A inspeção identificou, ainda, que há apenas uma máquina de lavar e um fogão danificado para atender mais de 20 pessoas, entre crianças, acolhidas e equipe profissional. O teto está  empoeirado e um buraco na saída da cozinha, rumo à área de serviço, foi preenchido com brita, um paliativo para evitar acidentes.

Buraco no piso na área da lavanderia foi preenchido por brita para evitar acidentes - Foto: Leidiane Sampaio

Buraco no piso na área da lavanderia foi preenchido por brita para evitar acidentes – Foto: Leidiane Sampaio

Algumas das acolhidas estavam inseridas no mercado de trabalho, outras não. A vereadora observou que “não há uma política que conecte a assistência social e o órgão de geração de emprego e oportunidade, o Instituto de Geração de Oportunidades de Florianopolis (IGEOF). Então, não tem uma política de empregabilidade para essas mulheres”, conclui Ayres.

Após a visita, o parlamentar Pastor Giliard Torquato (PL), membro da comissão, se manifestou pelas redes sociais. “Elas têm aqui em Florianópolis, através de um serviço oferecido pela Prefeitura, um local, um espaço, para que sejam acolhidas”, afirma. E prossegue: “sendo necessário, se mudam da sua casa para este local e ali passam por um tratamento, até que estejam reabilitadas e prontas para voltar para a sociedade”.

Gravado em ângulos fechados, o vídeo não mostra as instalações da casa. O único take mais aberto exibe a imagem de uma Bíblia Sagrada. Em seguida, o vereador parabeniza o prefeito Topázio Neto, destacando a “preocupação com todas as áreas e faixas etárias” da cidade. O vídeo termina com uma bênção: “Deus te abençoe”.

A reportagem acessou, na íntegra, um procedimento instaurado em julho de 2024, pelo Ministério Público de Santa Catarina, para apurar os impactos da precarização do Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CREMV) e da própria Casa Amadas. O documento comprova que os problemas narrados por Carla, e por diversas fontes ouvidas pelo ICL, são velhos conhecidos da Prefeitura.

O procedimento do MPSC mostra que, em agosto daquele ano, o promotor Jádel da Silva Júnior solicitou um relatório técnico à equipe da casa. O documento apontava uma série de problemas estruturais graves: fiação elétrica antiga provocando curtos-circuitos, chuveiros frequentemente queimados e aparelhos de ar-condicionado inoperantes. Para evitar banhos frios, a equipe improvisava o aquecimento da água em panelas.

Imagens retiradas do relatório elaborado pela equipe técnica do Projeto Amadas, em julho de 2024, anexo no processo movido pelo Ministério Público de Santa Catarina. 

Imagens retiradas do relatório elaborado pela equipe técnica do Projeto Amadas, em julho de 2024, anexo no processo movido pelo Ministério Público de Santa Catarina. 

Além da estrutura precária, o relatório mencionava falta de segurança — muros baixos, iluminação deficiente e ausência de vigilância armada —, e registrava, inclusive, a prisão de um agressor nas proximidades da casa, que havia ameaçado voltar para cometer feminicídio. Havia, também, denúncias de alimentação vencida, falta de manutenção de equipamentos essenciais, salários atrasados e relatos de condutas antiéticas de funcionárias sem a devida responsabilização pela gestão.

Ainda assim, reuniões entre a Secretaria Municipal de Assistência Social e a Nurrevi se limitaram a discutir a renovação da parceria. Todo o quadro culmina no esgotamento da equipe técnica que, no relatório, afirma: “são tantas questões difíceis enfrentadas, que a equipe frequentemente adoece pela falta de respostas, soluções e auxílio daqueles que deveriam estar à frente do Projeto buscando a proteção das mulheres, o verdadeiro propósito da causa”.

Tema está fora da pauta

Entre 1º de janeiro e 13 de abril de 2025, a Prefeitura fez, em média, 260 publicações em seu perfil oficial no Instagram. Os conteúdos foram diversos: alerta de tempestade, campanhas de inclusão, comemorações do aniversário da cidade, doações de animais, eventos culturais e até vídeos reforçando que “esmolas não mudam vidas” — referência direta à população em situação de rua. Nenhuma postagem foi dedicada a mulheres vítimas de violência.

O perfil da Secretaria de Assistência Social seguiu a mesma lógica. No mesmo período, foram feitas 28 postagens: uma delas anunciando o fechamento do Restaurante Popular, três voltadas à população em situação de rua, e nenhuma destinada às mulheres em situação de violência. O silêncio se repete também no perfil de Bruno, que realizou 247 publicações — novamente, nenhuma voltada ao tema.

A reportagem do ICL Notícias solicitou, via mensagem de whatsapp e email, entrevista com o secretário de Assistência Social de Florianópolis, Bruno Souza, por meio da assessoria de imprensa da pasta. Até o fechamento desta reportagem, não obtivemos retorno.



Fonte: ICL Notícias

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