Manifestação em Buenos Aires reúne aposentados, cientistas e feministas contra governo Milei

0
10


ouça este conteúdo

00:00 / 00:00

1x

Por Carolina Ferreira

Nesta quarta-feira (4), a Praça do Congresso, em Buenos Aires, mais uma vez voltou a ser o centro das mobilizações populares contra o governo de extrema direita de Javier Milei. Diversos setores sociais se reuniram em um ato massivo que marca a 15ª marcha consecutiva dos aposentados — uma das frentes mais ativas na resistência ao projeto ultraliberal do presidente argentino.

Desde março, aposentados saem às ruas todas as semanas denunciando a perda de direitos e a queda nas condições de vida. Hoje, suas pensões quase não cobrem o valor da cesta básica que, em fevereiro, atingiu 343 mil pesos (menos de US$300 em valor de mercado, cerca de R$1,71 mil).

“Tal como a frase da série argentina O Eternauta, que virou lema das marchas: Lo viejo funciona”, lembra Samiyah Venturi Becker, mestranda do Prolam/USP, destacando a importância histórica e simbólica da luta por uma previdência baseada na solidariedade.

Diferentemente das mobilizações semanais anteriores, a desta quarta-feira reuniu uma ampla frente de setores impactados pelas políticas de austeridade impostas pela “motosserra” da Casa Rosada. Sob o slogan “a resistência cresce”, somam-se profissionais do Hospital Garrahan — referência nacional em pediatria —, pesquisadores do Conicet (órgão científico federal), migrantes, movimentos feministas, estudantes, a CGT (central sindical do setor cultural), povos indígenas e familiares de pessoas com deficiência, entre outros grupos.

O protesto articulou pautas diversas como a defesa das aposentadorias, financiamento da ciência e da educação, além dos direitos das mulheres e pessoas com deficiência.

A manifestação aconteceu no mesmo dia em que a Câmara dos Deputados discute projetos que confrontam a política de cortes do governo, como a prorrogação do auxílio emergencial para pessoas com deficiência, o financiamento de universidades públicas e de instituições científicas, além de medidas de apoio a aposentados e municípios atingidos por enchentes.

Milei

“O ajuste e a crueldade não se enfrentam sozinhos”

A mobilização desta quarta-feira também celebra os dez anos do coletivo feminista Ni Una Menos (Nem uma a menos), surgido em 2015, após o assassinato da jovem Chiara Paz.

O movimento decidiu unir sua tradicional marcha de 3 de junho à manifestação desta quarta-feira contra  o desmonte sistemático das políticas de gênero e diversidade promovido por Milei, como a extinção do Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade; ataques ao programa de Educação Sexual Integral (ESI); o corte de verbas para programas de saúde e acompanhamento a vítimas de violência;  e a precarização econômica que afeta de maneira mais intensa mulheres e a população LGBTQIA+.

“Porque o ajuste e a crueldade não se enfrentam sozinhos”, afirma o coletivo em uma postagem nas redes sociais, convocando à construção de alianças entre as lutas sociais.

Para a pesquisadora da USP, a articulação do Ni Una Menos com o movimento dos aposentados representa mais do que resistência: tem um peso simbólico enorme, especialmente diante do fato de que o movimento feminista foi eleito como um dos principais inimigos do atual governo. “Desde que assumiu, Milei impõe um forte retrocesso aos direitos conquistados. Na prática, a maioria das mulheres está hoje sem o direito ao aborto legal, seguro e gratuito garantido por lei desde 2020, devido ao corte de verbas e à interrupção no fornecimento de insumos para o procedimento”, afirma.

Para ela, essa escolha carrega grande significado: “São justamente esses setores — aposentados e mulheres — os mais atingidos pelas políticas de Milei, especialmente com o fim da moratória previdenciária”.

Presidente Javier Milei

“Resistência de baixo para cima”

O jornalista brasileiro Rogério Tomaz Jr. lembra que a mobilização dos aposentados começou ainda no fim do governo de Alberto Fernández (2019-2023) contra os cortes no sistema previdenciário e em programas de assistência social promovidos pelo então ministro da economia, Sergio Massa, mas passou a ser alvo de repressão sistemática sob a gestão de Milei. “Eles não representam uma oposição permanente, mas se reúnem semanalmente. E, toda vez, enfrentam repressão violenta, com prisões e ataques até contra a imprensa”, denuncia.

Para Dolores Rocca Rivarola, professora de Sociologia da Universidade de Buenos Aires (UBA), a força dessa mobilização não está em seu tamanho — já que são marchas relativamente pequenas —, mas na constância. “Talvez por isso também sejam mais facilmente reprimidas que outras mais massivas, como as universitárias”, avalia.

Ela destaca que há uma tradição dessas marchas na Argentina que remontam às manifestações semanais durante o governo Carlos Menem (1989-1999), especialmente com a figura de Norma Plá, aposentada que ficou conhecida após “fazer chorar” Domingo Cavallo, então ministro da Economia, ao protestar contra contra as medidas de austeridade da década de 1990 e os cortes de pensões.

Diante da avalanche de medidas autoritárias do atual governo, Rocca defende a unificação das pautas – que cresce “de baixo para cima” – como resposta necessária. “Desde 2024, assistimos a cortes simultâneos, fechamento de órgãos e paralisação de setores inteiros do Estado. Isso dificulta uma reação coordenada, pois os ataques são constantes e atingem diferentes frentes ao mesmo tempo.”

Entretanto, o sociólogo Pablo Semán, da Universidade de San Martín, oferece uma visão mais cética sobre o impacto imediato da manifestação. “É uma convocatória de grupos muito pequenos que estão tentando reagir. Eu mesmo vou participar, mas sei que são grupos reduzidos e com prestígio social limitado. As grandes massas têm outras reivindicações e, quando coincidem, não confiam nos convocantes”, afirma.

Semán questiona a ideia de que esse movimento representa uma articulação “de baixo para cima”. Para ele, muitos dos grupos que organizam essas marchas são, na verdade, expressões de uma “sociedade política ampliada”, com vínculos e recursos oriundos da política institucional. “Não vejo, por enquanto, um sujeito político novo emergindo dessas mobilizações. Isso não quer dizer que não possa emergir, mas, no imediato, o impacto não é favorável à oposição. No máximo, são sementes que podem germinar com a crise do governo.”

Essa visão crítica dialoga, em parte, com as preocupações de Dolores. Ela reconhece que o governo avança de forma simultânea sobre diferentes frentes, o que dificulta a articulação de uma resposta coordenada. “Estamos vendo cortes em várias áreas ao mesmo tempo, o que fragmenta a reação”, aponta.

Apesar das ressalvas apresentadas, há um consenso entre analistas sobre o papel simbólico e estratégico dessas manifestações. Para a professora da UBA, a união de pautas e setores pode anunciar “meses de ebulição cada vez mais massiva”.

Pablo Semán, embora veja limitações estruturais, reconhece que a marcha dos aposentados tem adesão, sobretudo, da classe média informada da capital. “A medida do governo é indefensável, e a mobilização tem um prestígio relativo, ainda que restrito.”

Rogério complementa essa leitura ao destacar que, além das ruas, há resistência também nas frentes jurídicas. Organizações como a UTEP (União dos Trabalhadores da Economia Popular) têm atuado junto a parlamentares para tentar barrar judicialmente os efeitos da agenda neoliberal de Milei, com sucessos parciais, ainda insuficientes.

 





Fonte: ICL Notícias

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui