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Por Tulio Kruse
(Folhapress) – A auxiliar de serviços gerais Regina Pereira de Oliveira, 53, esperou onze meses desde que perdeu o filho até que o laudo necroscópico — documento que atestaria as causas e as circunstâncias da morte — fosse entregue pelo IML (Instituto Médico Legal) de Praia Grande, no litoral de São Paulo.
Ela aguardava ansiosa a conclusão da análise forense no corpo. O filho de Regina, João Lucas Pereira de Oliveira Muniz, 21, foi morto a tiros por policiais militares durante a Operação Verão em março de 2024, e a família contesta a versão registrada no Boletim de Ocorrência.
Os agentes de segurança dizem que estavam na mira de armas de fogo quando atiraram, mas família duvida que João Lucas — que trabalhava numa bicicletaria e não tinha ficha criminal — estivesse armado.

Protesto de familiares de vítimas da violência policial na Baixada Santista (Foto: Reprodução)
O que diz o laudo do IML
Por causa da importância do laudo para comprovar o que realmente ocorreu, Regina ficou decepcionada quando leu o documento pela primeira vez, em fevereiro deste ano. Havia informações básicas faltando.
Não estavam no laudo as medidas do corpo, a análise de cada perfuração (que poderia demonstrar se os disparos foram feitos a longa ou curta distância), a descrição das vestes, se havia ferimentos que não são mencionados no BO e se houve exame para procurar vestígios de pólvora em suas mãos. Também não havia fotos do corpo, nem sequer um croqui indicando a trajetória dos disparos de arma de fogo que o atingiram.
Regina descobriu que a falta de informações aconteceu porque o médico-legista que assina o laudo não fez o exame no corpo. Ele também não teve acesso a qualquer anotação sobre o procedimento, nem fotos, ou qualquer informação que já não estivesse no atestado de óbito ou no BO.
“O que eles fizeram, na verdade, não é um laudo. É simplesmente uma cópia do BO”, diz a mãe.
Médico réu
Logo após a morte de João Lucas, o exame cadavérico foi designado ao médico-legista Riscalla Brunetti Cassis. À época, Riscalla era réu havia cinco meses por improbidade, pois havia deixado de entregar centenas de laudos das necrópsias que realizou.
Um relatório do IML, do dia 14 de setembro de 2022, aponta que o médico tinha sob sua responsabilidade 591 laudos que não haviam sido entregues. Convocado por seus chefes para prestar esclarecimentos, Riscalla não apareceu na reunião nem apresentou justificativa, segundo ofício enviado pelo IML à Corregedoria da Polícia Civil.
Um levantamento posterior, de maio de 2023, apontou 243 laudos pendentes. O volume de trabalho no IML de Praia Grande aumentaria bastante meses depois.
No fim de julho daquele ano, teve início a Operação Escudo –que deixaria um saldo oficial de 28 mortos pela polícia. Pouco depois, de janeiro a abril de 2024, a Operação Verão tornaria-se a mais letal da PM desde o Massacre do Carandiru, com 56 mortos. A unidade da Praia Grande era a única na região apta a realizar exames cadavéricos.
Além de deixar de entregar os laudos, o médico também não compartilhava as informações colhidas nos exames –como anotações e fotos– para que os colegas expedissem o relatório. Assim, a chefia do IML de Praia Grande decidiu emitir os documentos sem essas informações.
Essa explicação está no depoimento do superior hierárquico de Riscalla, o médico-legista Guilherme Zanutto Cardillo, à Corregedoria. “Alguns [laudos] que eram mais urgentes, foram elaborados inclusive pelo declarante com base apenas nos dados de atestados de óbito, pois os dados anotados durante a realização das necrópsias, sequer foram entregues ao declarante pelo dr. Riscalla para que esses laudos fossem emitidos por outros médicos legistas”, diz o documento.
Procurado por telefone e por email, Cardillo não quis dar entrevista.
A advogada de Regina estuda a possibilidade de pedir a exumação do corpo de João Lucas, com a intenção de continuar a investigação. A Promotoria já pediu o arquivamento do caso. “O Estado matou o filho dela, o Estado não fez o exame que deveria fazer, e agora o Estado quer arquivar a investigação. São três violências extremas. É muito triste de ver isso”, disse a advogada Keila Mota.
O inquérito traz outros casos que foram afetados pelos atrasos na entrega dos laudos. Há, por exemplo, uma investigação de homicídio que estava havia 18 meses à espera do documento. A Corregedoria recebeu cartas de familiares de pessoas mortas em acidentes de trânsito que precisavam dos laudos para liberação do seguro do DPVAT, também com meses de espera.
“O sentimento é de revolta, de impotência e de desigualdade”, diz Regina. “Acabou com a minha vida, com tudo isso que aconteceu: ter enterrado meu filho e, agora, vou ter que desenterrar ele de novo.”
As primeiras reclamações sobre o trabalho de Riscalla são do início de 2022. Além das centenas de laudos sob sua responsabilidade que não haviam sido entregues, ele também havia faltado audiências de custódia para as quais estava escalado para realizar exames de corpo de delito.
O médico-legista prestou depoimento à Corregedoria em março de 2023. Ele deu várias justificativas para os atrasos. Afirmou que o sistema do IML tinha problemas que dificultavam a emissão dos laudos durante os plantões e que “sempre foi muito criterioso na realização dos exames necroscópicos e portanto, levava mais tempo” para fazer o procedimento do que a maior parte dos seus colegas.
Além disso, teve problemas de saúde e ficou afastado por quatro meses do IML em 2021, “razão pela qual houve ainda mais acúmulo de laudos em atraso”. À época do depoimento, Riscalla afirmou que vinha tentando emitir cerca de 50 laudos por dia para diminuir suas pendências, e estimava que conseguiria resolver o problema em três meses.

O secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo Guilherme Derrite na Baixada Santista (Foto: SSP/SP)
Defesa de Riscalla
Questionada, a Secretaria de Segurança Pública da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) informou que Riscalla atualmente está afastado do trabalho do IML por motivos de saúde. Afirmou também que os laudos que já foram emitidos e aqueles ainda pendentes obedecem às regras de uma portaria da Polícia Técnico-Científica para casos de afastamentos, suspensões, demissões, exonerações, falecimentos ou aposentadoria.
A portaria em questão afirma que as direções das unidades do IML “deverão providenciar a coleta de anotações, fotografias e outros elementos” em casos desse tipo. Outra portaria normativa da Polícia Técnico-Científica, publicada em 2022, diz que “é obrigatório o armazenamento de documentos relacionados a cada caso” nos sistemas dos Institutos de Criminalística e Médico-Legal pelo servidor responsável.
“As denúncias apresentadas contra o perito são apuradas, sob sigilo, pela Corregedoria da Polícia Civil”, diz a SSP.
A defesa de Riscalla repetiu para a reportagem as justificativas apresentadas em depoimento à Corregedoria, acrescentando que ele desenvolveu “um quadro de burnout e crises de ansiedade, que comprometem sua plena atuação profissional”.
“Todas as medidas cabíveis estão sendo adotadas para esclarecer os fatos e demonstrar que, em nenhum momento, houve intenção de prejudicar investigações ou omitir informações relevantes”, disse o advogado Erick do Carmo, em nota.
Fonte: ICL Notícias
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