Presença cada vez mais frequente de animais como pomba-campestre e lobo-guará indicam surgimento irreversível de campos no bioma. Interação com fauna e flora local ainda está sendo estudada
“Eu morei durante seis anos na cidade de Rolim de Moura e presenciei de perto a realidade da devastação ambiental. É como quando você olha para o mar e não vê o horizonte, tem plantação de soja que é assim também. É uma coisa assustadora. Em 2015, quando postei essa foto no Wikiaves, foi o primeiro registro da espécie no estado para a plataforma e já olhei isso com certa aflição. Os próprios usuários comentaram que o registro era um sinal de surgimento de campos e possível relação com desmatamento”, explicou Ferreira, em entrevista a ((o))eco.
Rolim de Moura está entre as cidades de Rondônia com maior área proporcional desmatada. Segundo dados do sistema PRODES, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 90,6% da vegetação nativa do município já não existe mais. Em 2021, apenas 9% da floresta que lá existia ainda estava em pé.
Para realizar a análise, os pesquisadores da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e da empresa CMData cruzaram dados de ciência cidadã – como a plataforma Wikiaves, citada por Ferreira – e outros registros de ocorrência da Zenaida auriculata com informações de desmatamento no bioma.
“A avoante pode se beneficiar de culturas agrícolas, como soja, milho e trigo, uma vez que sua dieta inclui esses tipos de grãos. Esta pode ser uma das razões pela qual as populações dessa ave estão se dispersando para áreas desmatadas, em grande parte sendo ocupadas por tais culturas. O desmatamento no bioma amazônico modifica áreas florestais, transformando-as em campos abertos, semelhantes ao habitat preferencial de Zenaida auriculata, o que contribui para o sucesso da espécie em colonizar essas novas áreas”, explica Alexandre Gabriel Franchin, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo.
De acordo com Gabriel Magalhães Tavares, biólogo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e também autor do trabalho, ainda é cedo para dizer se a pomba-campestre está, de fato, estabelecida no bioma e quais serão os impactos de sua presença para outras espécies de fauna e flora local. O que dá pra dizer é que a “troca” de espécies florestais por outras generalistas não é um bom negócio.
“É como se eu estivesse trocando quadros de Picasso por tampinhas de garrafa. A perda da diversidade biológica para o ganho de espécies generalistas, como a pomba-campestre, não se equipara. Essa história tem sido mostrada em diferentes lugares e diferentes estudos”, explica.
Lobo-Guará Na Floresta
Em novembro de 2020, um lobo-guará foi abatido em uma Terra Indígena de Alta Floresta, cidade do extremo norte Mato-grossense, divisa com o Pará. Amedrontados e ao mesmo tempo curiosos, os índios quiseram ver de perto aquela espécie até então desconhecida. Apesar de atípica, a presença do canídeo na floresta amazônica não é novidade.
Estudo conduzido por pesquisadores de Mato Grosso, Amazonas e Rondônia, publicado em novembro de 2020, listou 22 registros de lobo-guará na Amazônia nas últimas duas décadas.
À época da publicação do trabalho, 10 desses registros eram inéditos e representavam uma expansão de 51 mil km² no limite da distribuição geográfica da espécie em território nacional.
O lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é um mamífero típico das savanas da América do Sul. Historicamente, o limite norte de sua ocorrência é a Amazônia, mas a pesquisa divulgada em 2020 mostrou que a ocupação humana nas bordas da floresta tropical, transformada em pasto e monocultura de grãos, tem propiciado a propagação da espécie cada vez mais para dentro do bioma.
Ao contrário da pomba-campestre, cuja ocorrência na Amazônia ainda precisa de estudos, já é possível dizer que o lobo-guará chegou para ficar em determinadas áreas do bioma, diz Odair Diogo da Silva, pesquisador da Universidade do Estado do Mato Grosso e um dos autores do estudo em questão.
“Já dá para falar em estabelecimento da espécie [no bioma], porque em regiões onde registramos esses bichos lá atrás, a gente vem registrando novamente nas mesmas áreas”, explicou, em entrevista a ((o))eco.
Segundo Silva, de 2020 para cá, novos registros do lobo-guará foram feitos dentro da área que deveria ser floresta, atualmente muito antropizadas. Essa mudança de paisagem, diz ele, exerce pressão sobre espécies de ambos os biomas.
“Vamos pensar num primata, numa harpia, eles precisam da floresta em pé. Se você transformou em pastagem, a paisagem fica mais parecida com o Cerrado, o que acaba empurrando as espécies florestais mais para dentro do bioma. Por outro lado, as grandes plantações de soja no Cerrado, por exemplo, fazem com que as espécies típicas deste bioma percam habitat também, o que acaba expandindo a distribuição”, explica.
No caso do lobo-guará, o avanço sobre o que era antes bioma amazônico pode trazer inúmeros problemas, como a concorrência direta com canídeos amazônicos, a exemplo do cachorro-do-mato-de-orelha-curta (Atelocynus microtis), sua exposição a doenças resultantes da proximidade com animais domésticos e conflitos com humanos.
“Talvez o principal problema seja para ele mesmo, porque o que notamos é que normalmente eles usam as estradas para se deslocar, aumentando o risco de atropelamento e de contato com o homem, que pode vir abater ele”, diz.
Além dos impactos da interação da espécie com outros animais florestais e com o próprio homem, o pesquisador ressalta outra ameaça: o isolamento de populações resultante da fragmentação da vegetação nativa.
“Pode ser que, se uma população se estabelece aqui, ela pode estar muito longe de outras populações para conseguir trocar material genético. Outro problema é se esses bichos se isolarem [no bioma amazônico] e não terem parceiros para se reproduzir. Eles teriam que migrar muito mais para se reproduzir.”
Os impactos da chegada de espécies não florestais a áreas da Amazônia ainda estão sendo estudados. O que já se sabe, no entanto, é que as interações com fauna e flora podem ser profundamente modificadas. E a culpa é do bicho homem.
Por: Cristiane Prizibisczki
Fonte: O Eco