ouça este conteúdo
00:00 / 00:00
1x
Por Neuriberg Dias*
A composição partidária da Câmara dos Deputados reflete não apenas os resultados eleitorais e a vontade do eleitorado, mas também as dinâmicas estruturais do sistema político brasileiro. Desde a redemocratização, o Legislativo passou por um processo de fragmentação, ampliação do número de partidos e fortalecimento institucional, que moldou significativamente o perfil da representação política.
A partir da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, observa-se um movimento estratégico da direita, ainda que fragmentado, especialmente no campo da representação parlamentar. Essa expansão foi impulsionada por diversos fatores institucionais, ideológicos e conjunturais.
Para compreender tais transformações, é necessário adotar uma concepção ampla do espectro político, considerando não apenas a autodeclaração dos partidos, mas, sobretudo, sua atuação parlamentar. Assim, legendas tradicionalmente classificadas como centristas, como o MDB, têm se mostrado historicamente mais alinhadas à centro-direita. Outras, como o PSB, tendem a integrar o campo da centro-esquerda por sua atuação em pautas progressistas e oposição ao conservadorismo.
O crescimento da direita se deu em três movimentos centrais: a proliferação de partidos conservadores como forma de ampliar a base legislativa; o fortalecimento do acesso a recursos eleitorais — inicialmente por meio do financiamento privado e, posteriormente, através dos fundos partidário e eleitoral –; e, por fim, reformas nas regras eleitorais que favoreceram legendas maiores e com estrutura consolidada. Entre essas reformas, destacam-se o fim das coligações proporcionais (2017), a imposição da cláusula de desempenho e a restrição à criação de novos partidos.
A análise de dados, com base em levantamentos do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e do CEPESP-FGV, comprova essas tendências. O número de partidos classificados como de direita saltou de oito em 1990 para 23 em 2018, enquanto a esquerda manteve uma oscilação discreta entre quatro e oito siglas.
Em termos de representação parlamentar, a direita ocupava 402 das 503 cadeiras em 1990 (79,9%) e, apesar de oscilações nos anos seguintes, voltou a crescer, atingindo 383 deputados em 2022 (74,7%). Já a esquerda, que alcançou seu ápice em 2010 com 181 parlamentares (35,3%), caiu para 130 em 2022 (25,3%).
Essa mudança na correlação de forças pode ser explicada por quatro vetores principais: a crise da esquerda entre 2014 e 2018; a ascensão da nova direita bolsonarista; a fragmentação do centro político; e as reformas eleitorais e financeiras recentes.
Entre 2014 e 2018, a esquerda enfrentou um período de forte desgaste. A Operação Lava Jato impactou diretamente o Partido dos Trabalhadores e legendas aliadas, como o PCdoB e o PDT, promovendo intensa rejeição ao campo progressista. Muitos eleitores tradicionais migraram para alternativas de centro ou de direita, impulsionados por uma narrativa antipetista amplificada por setores da mídia e das redes sociais.
De 2018 a 2022, o bolsonarismo emergiu como fenômeno político articulado, unificando setores evangélicos, conservadores em valores e liberais na economia. O PSL (posteriormente o PL) tornou-se o principal veículo desse avanço, beneficiando-se da visibilidade conferida pela Presidência da República. Paralelamente, siglas como o União Brasil (resultante da fusão entre DEM e PSL) e os Republicanos (direita religiosa) consolidaram-se como forças relevantes, ampliando a bancada conservadora.
No mesmo período, o centro político sofreu grande erosão. Partidos como MDB e PSDB, historicamente moderadores do jogo político, perderam espaço e protagonismo, dividindo-se entre alianças à esquerda ou à direita. Esse esvaziamento contribuiu para a polarização ideológica no Parlamento.
Adicionalmente, alterações no marco legal eleitoral reforçaram a concentração partidária. O fim das coligações proporcionais beneficiou legendas com votação expressiva própria, como o PSL em 2018, e dificultou a sobrevivência de partidos menores. A nova forma de distribuição de recursos do fundo eleitoral também concentrou verbas nos partidos maiores, muitos deles alinhados à direita, acentuando a desigualdade de condições entre os campos ideológicos.
No Senado, a tendência foi semelhante, embora menos abrupta. A direita também ampliou sua presença, sobretudo com o fortalecimento de bancadas como PL, Republicanos e Podemos, sinalizando, na próxima legislatura, um provável crescimento do grupo, especialmente com a renovação de duas das três cadeiras em cada estado. Esse cenário torna a disputa por governabilidade mais complexa, mesmo com um presidente de orientação progressista no Executivo.
O crescimento da direita no Parlamento brasileiro não decorreu apenas de uma inflexão ideológica, mas de uma estratégia eficaz de consolidação institucional. Alianças locais com igrejas evangélicas, setores do agronegócio e o uso intensivo de recursos públicos permitiram a estruturação de um campo conservador resiliente e competitivo. A esquerda, por sua vez, enfrenta desafios relacionados a sua dependência do PT, à dificuldade de renovação de quadros e à limitada capilaridade territorial.
A partir de 2023, observam-se sinais de reação da esquerda, mas o ambiente institucional permanece adverso. Esse desafio se torna ainda mais evidente diante dos resultados das últimas eleições municipais, que revelaram um retrato desfavorável.
A superação desse quadro exigirá a construção de uma frente ampla, descentralizada, enraizada em novos territórios e conectada às demandas sociais emergentes. O futuro da representação progressista dependerá, em grande medida, da capacidade de articulação e reinvenção do campo da esquerda.
*Jornalista, analista político e diretor de documentação licenciado do Diap. É sócio-diretor da Contatos Assessoria Política
Fonte: ICL Notícias