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Por Igor Ojeda – Repórter Brasil
A alta dos preços dos alimentos observada nos últimos meses no Brasil tem como um dos fatores a falta de uma política consistente de reforma agrária. A avaliação é de Yamila Goldfarb, presidenta da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária).
“Há um déficit de oferta de alimentos que seria suprido pela reforma agrária, com mais famílias tendo acesso à terra e, portanto, podendo produzir alimento”, explica, em entrevista à Repórter Brasil.
Segundo Yamila, a oferta de alimentos deve ser uma das medidas de combate à fome. Mas, ao contrário do que propaga, o agronegócio não supre o mercado interno, além de ser responsável por danos ambientais e conflitos no campo.

Doutora em ciências humanas pela USP, Yamila Goldfarb preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Foto: Arquivo Pessoal)
“O agronegócio implementou uma estratégia política e midiática de se fazer valer como sendo tudo e todos: ‘É o motor da economia brasileira, representa o campo brasileiro.’ E essas duas afirmações são mentiras”, afirma.
Doutora em ciências humanas pela USP (Universidade de São Paulo), Yamila argumenta que a modernização do campo a partir da década de 1990 abriu margem para o discurso de que a reforma agrária não é mais necessária, ideia que considera um equívoco. “Não somente a reforma agrária sempre se manteve atual, como ela ganha uma nova importância hoje frente à questão climática”, reflete.
A entrevista é publicada por ocasião do Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, celebrado em 17 de abril. Instituída em 2002, a data marca o Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, quando, nesse mesmo dia de 1996, 21 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados pela polícia.
Na entrevista, a presidenta da Abra analisa também a relação do agronegócio com a extrema direita, as dificuldades encontradas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva para implementar a reforma agrária e a importância dessa política como medida de reparação para a população negra.
Leia a íntegra da entrevista com a presidenta da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária)
Repórter Brasil – O 17 de abril é o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária. Vivemos sob uma forte hegemonia política, econômica e cultural do agronegócio, e muitos, inclusive na grande mídia, falam que hoje a reforma agrária não faz mais sentido. Por que para você e para a Abra ela ainda faz sentido, especialmente nesse contexto que vem se consolidando nos últimos 20 anos?
Yamila Goldfarb – Esse discurso de que a reforma agrária não é mais necessária na verdade é até bem antigo. Acho que começou já na década de 1990. A partir do momento em que o latifúndio foi se transformando no agronegócio, foi sendo construída a ideia de que a modernização do campo já teria feito a produção ser suficiente para abastecer tanto a cidade quanto as indústrias.
O que a gente está vendo agora é o quanto essa ideia é um equívoco. Porque, por exemplo, a crise do preço dos alimentos tem a ver com uma ausência de reforma agrária. Há poucas famílias e uma porcentagem muito pequena da nossa área agricultável produzindo alimento de fato.
A maior parte do nosso território produz commodities para exportação, que não é alimento propriamente dito. É algodão, é celulose, é soja que não necessariamente se transforma em comida que vai para a mesa dos trabalhadores. O agronegócio não supre o mercado interno. Então, há ainda um déficit de oferta de alimentos que seria suprido pela reforma agrária, com mais famílias tendo acesso à terra e, portanto, podendo produzir alimento.
Há ainda uma gama de questões relacionadas à justiça social que dependem da reforma agrária. Não temos como superar o racismo, inclusive, se não superarmos a questão agrária. Além disso, não tem como combater a mudança climática se não tiver reforma agrária e os direitos territoriais garantidos de todos os povos e comunidades tradicionais, porque são esses segmentos do campo que, pelo seu modo de vida, vão produzir respeitando o meio ambiente, garantindo as condições ecossistêmicas, os ciclos hidrológicos, o reflorestamento.
Então, não somente a reforma agrária sempre se manteve atual, como ela ganha uma nova importância hoje frente à questão climática. Mas o discurso hegemônico é tirá-la de pauta, né?
Justamente, o debate sobre a reforma agrária na arena pública tem hoje um peso muito menor do que tinha até, digamos, o final dos anos 2000. Isso tem a ver com essa transformação do latifúndio improdutivo em agronegócio de que você estava falando?
Tem. E com a transformação do agronegócio no agro, né? O agronegócio implementou uma estratégia política e midiática de se fazer valer como sendo tudo e todos. “É o motor da economia brasileira, representa o campo brasileiro”. E essas duas afirmações são mentiras.
Primeiro, porque não é o motor da economia. Embora garanta uma balança comercial superavitária, não garante um equilíbrio na conta corrente brasileira, nas contas externas. Quando consideramos tudo o que entra sai do país, incluindo lucros e dividendos, royalties, frete, assistência técnica, remessas ao exterior, todos esses elementos que compõem a conta corrente brasileira, somos profundamente deficitários. E é um setor que muito mais recebe benefícios do que contribui. É uma relação parasitária com o Estado brasileiro.
Então, o agronegócio precisa construir essa imagem de que é muito importante para o país. E aí, claro, tira a reforma agrária de cena, ela deixa de ser necessária. Essa imagem foi muito construída a partir daquela campanha “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”.
Quando ele se transforma no agro e não mais no agronegócio, ele tenta abarcar todo mundo, inclusive a agricultura familiar. Mas ele não é tudo, porque na hora de disputar política pública e, principalmente, orçamento, há muita diferença entre quem é agronegócio e quem é agricultura familiar.
Em 2021, você e o professor Marco Antonio Mitidiero Junior publicaram o estudo “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo”. Você já falou um pouco sobre os argumentos contidos nele, mas poderia detalhar mais?
Nesse estudo queríamos mostrar como o agronegócio não é interessante para o país do ponto de vista econômico. Então, a gente questiona, por exemplo, quanto ele emprega de força de trabalho, e percebe que é um dos setores que menos emprega.
Em relação ao PIB, o agronegócio contabiliza em torno de 30%, mas esse cálculo considera cadeias produtivas inteiras: desde a porteira adentro até o processamento, equipamento e a distribuição desse produto alimentício. Fazem uma mágica da multiplicação. Mas se considerarmos, como a gente fez, somente porteira adentro, chega-se a cerca de 8%.
Também avaliamos quanto o setor paga de impostos. Como existe a Lei Kandir, que isenta, entre outras coisas, a exportação de bens primários, é mais vantajoso para o agronegócio exportar do que vender para o mercado interno. Também não paga imposto sobre o que é considerado insumo.
Vamos mostrando como essas diferentes isenções geram uma situação de muito privilégio para esse segmento. É um setor que na verdade não contribui do ponto de vista tributário, além de todo o arrolamento de dívidas que se faz continuamente. Ao mesmo tempo, mostramos como o agronegócio abocanha grande parte do crédito.
Em relação à produção de alimentos, se olharmos os dados do Censo Agropecuário do IBGE, vemos que quem está produzindo fruta, verdura, legume, não é o agronegócio, é a agricultura familiar. Então, avaliando com base em critérios mais econômicos, conclui-se que o agronegócio não é interessante para o país, para além do desmatamento, da grilagem de terra, dos conflitos.
No ano passado, você escreveu um artigo em que analisa justamente a relação do setor com a ascensão da extrema direita no Brasil. Qual é essa relação?
O agronegócio foi muito responsável por ventilar o próprio nome do Bolsonaro para a presidência. Ele não tinha grande importância até que o setor começou a ventilá-lo como uma verdadeira opção política.
Isso se deve muito ao Nabhan Garcia, que, depois, vai assumir a Secretaria de Assuntos Fundiários do ex-presidente. O que a gente vê é que o agronegócio percebeu que a extrema direita lhe é muito útil. Porque, principalmente a partir da Constituição de 1988, sempre teve de se manter de alguma maneira limitado. Tanto os direitos indígenas como a questão ambiental sempre foram pedras no sapato para o agronegócio mais atrasado e violento. E mesmo para o moderno.
Quando vem a extrema direita chutando o balde, o agronegócio fala: “Opa, aqui a gente tem um aliado”. Então, eles vão incentivar a extrema direita, porque com ela, libera tudo. Libera inclusive a arma, e a gente vê o quanto a violência no campo se mantém. O quanto os territórios com mais conflitos são os indígenas e de comunidades tradicionais, porque são os territórios que se mantiveram preservados. E o agronegócio precisa avançar a fronteira agrícola onde está preservado. Então há uma utilidade na extrema-direita.
O terceiro mandato do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem sendo bastante cobrado em relação à reforma agrária. Recentemente, a Repórter Brasil publicou uma entrevista com o João Pedro Stédile, líder do MST, que criticou bastante o governo por não avançar nesse tema. Qual é o balanço que você faz?
O desafio hoje passa muito pela questão da obtenção de terras para fazer a reforma agrária. Tem havido uma judicialização dos processos de desapropriação. Além disso, depois da crise econômica mundial de 2008, houve uma migração de uma parcela do capital financeiro para o mercado de terras e de commodities. O preço das terras aumentou muito, o que tornou muito inviável a modalidade de aquisição de terras pelo governo por meio da compra.
Então, há uma questão orçamentária. Claro, e deve-se considerar que houve um desmonte brutal do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] durante o governo Bolsonaro. Há também uma bolsonarização de boa parte dos funcionários públicos de carreira. Existe o teto de gastos. Há uma série de empecilhos.
Ao mesmo tempo, é preciso correr contra a maré, porque os estados estão de fato legalizando a grilagem de terras. É o caso de São Paulo, por exemplo, onde há a Lei 17.577 [sancionada em julho de 2022], que o governador Tarcísio de Freitas está implementando e sobre a qual há pedido de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Ela permite a venda de terras que estão irregulares para os fazendeiros, com 90% de desconto. Ou seja, entrega a terra grilada.
E, assim como essa lei de São Paulo, há várias em outros estados, principalmente nos amazônicos. São proporções gigantescas de terra que estão sendo perdidas. Terras que muitas vezes eram da União, foram passadas aos estados e estes estão legalizando a grilagem.
Esse debate deve ser feito com a sociedade brasileira, porque acho que nem o governo Lula está mostrando a importância de se fazer a reforma agrária. Veja, o governo Bolsonaro editou uma instrução normativa para o Incra [de número 112, em dezembro de 2021] que permite mineração e grandes empreendimentos em área de assentamento rural. A gente não conseguiu até agora revogá-la. E a mineração é um setor que está entrando violentamente nas áreas de assentamento.
Você já mencionou o problema da fome no Brasil. Você avalia que as políticas governamentais agrícolas e agrárias dos últimos governos, a opção pelo modelo de produção do agronegócio, são alguns dos fatores causadores desse problema?
Sem dúvida. Uma das dimensões da segurança alimentar é o acesso, ou seja, no caso brasileiro, as famílias têm de ter dinheiro para acessar os alimentos. Nesse ponto, a distribuição de renda é um elemento fundamental.
Mas não adianta ter essa dimensão garantida se outra dimensão, a da disponibilidade, também não estiver. É por isso que eu digo que um dos problemas da fome no Brasil é a oferta de alimento. É preciso ter mais oferta de alimento, atrelada a uma política de abastecimento que garanta uma distribuição de forma mais racional e regionalizada.
Veja, eu tenho um costume de sempre visitar os mercadões locais em toda cidade que vou. E eu sempre pergunto de onde vem a produção. Muitas vezes, para não dizer a maioria, o alimento vem aqui de São Paulo. É uma loucura. Você está no Mato Grosso, o maior exportador de soja do mundo, e o alface vem de São Paulo? A que preço vai chegar esse alface? Ou o tomate?
Então, é preciso uma política de abastecimento que pense as regiões do Brasil, respeite os hábitos alimentares e estimule circuitos curtos. Isso permitiria a oferta de produtos mais saudáveis e a melhora da renda para o produtor.
A questão é que essa política foi desmontada, e vem sendo reconstruída de alguma maneira agora. Assim como foi desmontada também a política de estoques públicos. Os mais liberais ficam de cabelo arrepiado porque acham que é intervencionismo. Só que se não há estoque público, não tem como garantir um preço mínimo para o produtor e um preço máximo para o consumidor.
O governo precisa poder jogar com a oferta e demanda. Tem de ter o poder de disponibilizar alimentos quando há uma crise num estado como aconteceu com as enchentes no Rio Grande do Sul, por exemplo. Ou quando ocorreu a greve de caminhoneiros, e as granjas iam sacrificar os frangos se não existisse o estoque da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] para fornecer ração para esses estabelecimentos.
É uma intervenção necessária para garantir alimento para a população nos momentos de crise, como eventos climáticos extremos ou uma pandemia. Então, é uma conjunção de medidas: oferta, controle dos estoques, políticas de incentivo à produção e de distribuição, renda das famílias.
Em outro artigo, você defende que a reforma agrária seria uma política de reparação histórica para a população negra no Brasil. Pode explicar?
Existe uma indissociabilidade entre a questão agrária e a questão racial no Brasil. Na época colonial, o que dava valor às fazendas eram os trabalhadores escravizados. Quando a pressão externa pela abolição da escravatura começou a se intensificar, os senhores de escravizados se prepararam e fizeram a Lei de Terras [de 1850]. A terra, antes uma concessão da Coroa portuguesa, passou a ser propriedade privada.
A Lei de Terras permitiu a comercialização da terra, não é?
Sim. Você passa a ser dono da terra e pode vendê-la. O Brasil faz esse processo de libertação dos escravizados sem reparação alguma e tirando deles a possibilidade de acesso à terra, pela compra, e também de acesso à educação. E, durante a ditadura militar, ocorre a expulsão das pessoas do campo, a grande maioria, negras. Foram expulsas à bala, com fogo sendo ateado nas suas casas. É assim que se deu a tal modernização agrícola. Tudo isso faz com que a gente tenha uma dívida monstruosa com a população negra. E uma reparação a esses processos que foram incentivados pelo Estado só pode ser coletiva, com a reforma agrária e a garantia dos direitos territoriais de todos os povos e comunidades tradicionais.
E você acredita que exista também um componente de gênero nesse debate da reforma agrária?
Sem dúvida. As mulheres, e particularmente as mulheres negras, são as mais penalizadas pela fome, por exemplo. Porque são geralmente as responsáveis pela garantia do alimento nos lares. Além disso, há um processo de envelhecimento do campo que penaliza mais as mulheres, pois há uma sobrecarga sobre elas. E a reforma agrária seria uma maneira de atrair os jovens e equilibrar um pouco essa situação.
Fonte: ICL Notícias
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