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O povo nas ruas do mundo e da Roma imortal para o funeral do Papa Francisco atestam um Papa efetivamente pop, mas não aquele da era das comunicações de massa que marcou o longo papado de João Paulo II, o polonês reacionário. E sim o apelo e o pranto popular dos condenados da terra, ou seja, os humilhados, excluídos, marginalizados de todo tipo. Com efeito, o argentino Bergoglio, nomeado Francisco numa lição de humildade, tentou preparar um caminho diferente daquele de seus antecessores, mais preocupados com o direito canônico do que com o direito à dignidade.
Contudo, as disputas entre uma igreja mais comunitária, uma rede fraterna de irmãos e irmãs e uma igreja institucional poderosa e tirânica não é uma tensão inventada por Francisco. Digamos que a marca estrutural da história da Igreja Católica é exatamente – desde os evangelhos – uma disputa constante entre a centralização e a rede comunitária de iguais. Daí as acusações anacrônicas contra Francisco, com o argumento de que o argentino progressista seria um comunista. Ora, convenhamos, Francisco foi até a “página 3” na maior parte dos casos que enfrentou, afinal, a oposição reacionária foi ferrenha. Contudo, ninguém se torna chefe supremo de uma instituição milenar e profundamente conservadora sem carregar consigo certos dogmas e respeito aos ritos “canônicos”. Comunista em moldes marxistas?! Delírio completo. O “comunismo” de Francisco vem de muito antes, exatamente das disputas acima mencionadas.

Lernardo Boff, na seta vermelha à esquerda, e Jorge Mario Bergoglio (depois Papa Fracisco) em 1972 em San Miguel, Argentina. Diz Leonardo Boff: “Trocando correspondência comigo, o Papa Francisco lembrou uma reunião que tivemos em San Miguel, Argentina, de 23 a 29 de fevereiro de 1972, e me enviou esta foto. Ele é o quarto da direita.” Fonte: Acervo pessoal de Leonardo Boff.
Em 1984, o Frei franciscano Leonardo Boff, um dos arautos da “Teologia da Libertação” no mundo, foi convidado pelo então Cardeal Joseph Ratzinger (depois Bento XVI) a se explicar diante do que escreveu no livro “Igreja: Carisma e Poder”, no qual narra exatamente a disputa e a história de uma igreja cindida entre aqueles que de fato fizeram e fazem a opção pelos pobres e aqueles que preferem o exercício de um poder tantas vezes tirânico e ostentador. Tive o privilégio de ouvir ao menos três vezes do próprio Leonardo – sempre dando lições de bom humor – que ele esteve duas vezes na cadeirinha do Galileu Galilei, vale dizer, a cadeira daqueles que enfrentaram a “Santa Inquisição”. Por óbvio que nos anos 1980, Leonardo Boff não temeria a fogueira e a morte como condenação. Mas seu livro causou furor entre os pares reacionários, tendo sido – nas próprias palavras de Boff – notificado:
“Culminou em 1985 com uma ‘notificação’ e não um decreto condenatório, proibindo a reedição do livro e a imposição ao autor de um tempo de “silêncio obsequioso”. Não se faz nenhuma condenação doutrinária, apenas se diz como conclusão: ‘Esta Congregação sente-se na obrigação de declarar que as opções aqui analisadas de Frei Leonardo Boff são de tal natureza que põe em perigo a sã doutrina da da fé, que esta Congregação tem o dever de promover e tutelar’’.
Noutros tempos, se não se retratasse, o franciscano Boff teria ardido na fogueira desvairada da “Inquisição”, que até hoje – com novas roupagens – insiste em perseguir quer quer que desafie seus padres, monsenhores e bispos de olhos sombrios. Contudo, Boff seguiu o caminho dos pobres e da libertação. Quando Bergoglio assumiu o Vaticano em 2013, logo se estabeleceu a parceria entre um um jesuíta nomeado Francisco e um franciscano avesso ao cânone reacionário, um argentino e um brasileiro que se reencontraram para arejar uma igreja cuja hegemonia é a da centralização autoritária. Trocando cartas, lembranças, alertas e afetos vários, Bergoglio e Boff construíram amizade sólida, cujos frutos estão – por exemplo – na encíclica Laudato Si, na qual os alertas pelo respeito à “Casa Comum” num mundo condenado pelo Capitalismo devorador de pessoas e de todos os seres do planeta são alertas dos estudos do eco-teólogo Leonardo Boff, para o qual o Papa Francisco confiou os escritos.
Com efeito, não sabemos se as lições de Boff e Bergoglio serão seguidas pelo próximo Conclave e pelo próximo Papa. Quisera eu – um pagão – que a escolha se parecesse com o filmaço “Conclave”, e que o camerlengo “Ralph Fiennes” fosse implacável contra os inescrupulosos de todo tipo. Porém, é mais provável – considerando a história estrutural do hegemonia reacionária e centralizadora – que a igreja continue dourando a pílula, vale dizer, faça aquele discurso apaziguador e “murista” que prefere não enfrentar as mazelas do Capitalismo, afinal, a Igreja e seu banco do Vaticano fazem parte dele.
Mas o interessante disso tudo é que como instituição em permanente disputa, os membros da “eclésia” – mesmo entre tensões e notificações – sempre se reconhecem como parte da milenar congregação de Cristo. “Ratzinger sempre foi muito meu amigo, nunca deixamos de nos respeitar e debater ideias”, disse Leonardo Boff, ao longo das conversas que tivemos na última semana em São Paulo. Um franciscano afetuoso e narrador primoroso, Boff foi narrando contos e causos dos seus mais de 86 anos, nos lembrando a todo instante se ele chegaria aos 88 anos de Bergoglio. Entre cartas e fotografias trocadas por Boff e Bergoglio, fui me aproximando tanto da Argentina, do Brasil e do Vaticano de Francisco. Mas fui, sobretudo, compreendendo melhor a fundamental importância da “Teologia da Libertação”, que serve aos leigos, doutos, pagãos e cristãos, verdadeira lição de paz, pão e terra, nascida das profundezas rebeldes da América Latina.

Carta enviada pelo Papa “Fraciscus”, do Vaticano, a Leonardo Boff em 2021. Os dois estabeleceram constante troca de cartas e contribuição mútua. Na carta, Fracisco oferece à Boff a “Oração a São José”, que recitou ao longo de décadas. Nos detalhe da insígnia papal é possível ver a assinatura “Franciscus”. Fonte: Acervo Pessoal de Leonardo Boff.
Fonte: ICL Notícias