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Julgo que os leitores brasileiros – principalmente aqueles que acham que as golpadas políticas são um exclusivo do seu país – gostarão de conhecer esta história da política portuguesa. Começa assim. Há um ano, mais coisa menos coisa, a Procuradora-Geral da República emitiu nota pública em que dava conta da existência de uma investigação ao primeiro-ministro, o que levou à sua demissão e a eleições antecipadas. Em apenas três meses, através de um pequeno parágrafo num comunicado, o Ministério Público derrubou o governo, provocou eleições e mudou o governo do país – a direita ganhou as eleições por uma unha negra e governa desde então. Passou um ano e nada mais se soube deste inquérito.
Este é o primeiro capítulo da história. Segue-se o segundo. Um ano depois, estamos de novo em campanha: uma moção de confiança foi derrotada no Parlamento em resultado de se ter ficado a saber que a família do primeiro-ministro detém uma empresa que recebe avenças mensais de várias empresas privadas. Em consequência, o ministério público abriu uma “averiguação preventiva” ao primeiro-ministro. Não um inquérito, mas uma “averiguação preventiva” – para determinar se haverá, ou não, inquérito. Como é costume a campanha eleitoral começou imediatamente e estamos agora na fase dos debates televisivos. Esta semana o Ministério Público decidiu entrar na campanha divulgando a existência de uma outra “averiguação preventiva”, desta vez dirigida ao líder da oposição. Deste modo, equilibra o jogo e apresenta-se como árbitro eleitoral – cada um deles tem a sua “averiguação preventiva”.
Sucede que a “averiguação preventiva” ao líder da oposição é baseada numa carta anónima. Sucede ainda que esta denúncia já tinha sido investigada e arquivada por não ter nenhuma credibilidade nem fundamento. Mas isso parece que aconteceu na cidade do Porto, não em Lisboa. Assim sendo, abre-se nova investigação (houve uma falha de comunicação entre as duas sedes, lamentam “fontes próximas”). Seja como for, a “averiguação” é profundamente injusta para o líder da oposição, mas pouco importa – o ministério público é o dono do jogo: os dois são iguais e ambos estão sob a tutela e vigilância da única força do bem na República.
Bem vistas as coisas, o problema não é a “averiguação”, mas a divulgação pública da “averiguação”. Nada disto teria a mínima importância se fossem cumpridas as normas penais e se a queixa anónima fosse investigada em segredo. O que torna a questão séria – e inaceitável – é que aquilo que está legalmente protegido pelo segredo de justiça, justamente para proteger os direitos de quem é investigado, foi usado como instrumento ilegítimo de interferência na campanha eleitoral. Aí, no Brasil, chamam-lhe” vazamento”; aqui, “violação do segredo de justiça”. Seja como for, é um crime. Um crime que precisa da colaboração activa dos procuradores para ser cometido – afinal, mais ninguém tem acesso ao processo.
Parece-me também digno de nota que – como, aliás, aconteceu no Brasil durante a Lava Jato – o crime de” violação do segredo de justiça” seja considerado pelo jornalismo português como monopólio do Estado, como um crime que deve ficar reservado às autoridades públicas porque só elas o cometerão em nome de um “bem maior”. Um crime institucional, por assim dizer. E, no entanto, todos sabemos que quando o Estado permite aos seus agentes que se comportem acima da lei ou permite que possam ser eles a escolher o momento em que a lei se aplica ou não aplica, o que está a fazer, digamo-lo sem rodeios, é instalar a corrupção dentro das suas instituições. Esta “averiguação” é apenas a forma suja que o ministério público sempre encontra de influenciar a campanha eleitoral.
Outro aspecto interessante da história é o cliché da “cabala”, que assoma imediatamente aos lábios dos jornalistas, desejosos de desacreditar os maluquinhos das “teorias da conspiração”. Como se fosse possível explicar o que aconteceu sem a combinação secreta entre o procurador que dá a informação e o jornalista que a recebe e que a divulga, sabendo que está a cometer uma injustiça contra o político visado. Não. A golpada política decorreu na sombra porque, justamente, o que carateriza o poder da violação do segredo de justiça é ser um poder oculto. Não resiste à luz do dia – e é por isso que é uma cabala.
Finalmente, talvez se possa dizer que o pior de tudo isto é a forma irresponsável e despreocupada com que o fizeram. Sabiam que não escapariam à censura generalizada e, ainda assim, fizeram-no. Fizeram-no, não para exercer o poder, mas para o exibir: a reputação de poder é poder. Fizeram-no porque podiam. E vão continuar a fazer. E não, esta não é uma história sul americana – esta é uma história bem europeia.
Fonte: ICL Notícias