A mobilização da 6ª Semana Social Brasileira, juntamente com os movimentos sociais que atuam pelo direito à moradia, sugerem e justificam a urgência da criação de uma Articulação Pastoral Nacional da Moradia, da Favela ou do Teto.
O agravamento da crise urbana, em particular, ante ao progressivo empobrecimento das classes populares nas áreas centrais e periféricas das cidades, impactadas pelo modelo econômico e pela pandemia da Covid-19 – que vitimou mais de 630 mil pessoas no Brasil, até agora –, tem gerado milhões de deserdados urbanos: do trabalho, da terra, da moradia.
Diante desse cenário, a mobilização da 6ª Semana Social Brasileira, iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), juntamente com os movimentos que lutam pela moradia e vida digna nas favelas, iniciaram um diálogo para possivelmente fomentar uma Articulação Pastoral Nacional da Moradia, da Favela ou do Teto. A ação visa potencializar iniciativas que “despontaram na Igreja do Brasil nesta direção, bem como impulsioná-las, trazer o ‘grito’ das favelas, cortiços, periferias geográficas em geral (que são tantas) para a Igreja e, igualmente, fomentar a criação desta ação conjunta nas Dioceses e Arquidioceses ao longo de nosso extenso e desigual país”.
Acompanhe, abaixo, o artigo proposto pela equipe que sugere ser esta ação uma manifestação palpável de uma espiritualidade libertadora. “É o ‘grito’ dos milhões de empobrecidos e o ‘grito’ do Evangelho que precisamos escutar, em sinodalidade, e corresponder pela ação pastoral sociotransformadora”.
Eis o artigo
Pastoral da Moradia da Favela ou do Teto
Articulação e Presença Pastoral
O agravamento da crise urbana em função do progressivo empobrecimento das classes populares nas áreas centrais e periféricas, impactadas neste momento pela pandemia da covid 19, que vitimou mais de 630 mil pessoas no Brasil até agora, tem gerado milhões de deserdados urbanos do emprego e da terra. É uma ferida aberta que sangra nos nossos territórios, dos ameaçados pela agenda do mercado imobiliário aos impactados pelo ônus excessivo do aluguel, onde “quem come não paga aluguel e se paga o aluguel não consegue comer”.
Este quadro de milhões de sem-teto, espalhados pela cena urbana, abandonados pelo Estado e excluídos do Direito à Cidade, é o resultado do acelerado desmonte de todas as políticas públicas nas cidades, de produção habitacional, no acesso à água e o saneamento e de urbanização de favelas, recrudescendo o déficit habitacional quantitativo e qualitativo em quase a metade da população brasileira. Segundo a Fundação João Pinheiro, o Brasil necessita construir agora, imediatamente, 8 milhões de novas moradias para mais de 30 milhões de pessoas e melhorar a infraestrutura dos territórios, com acesso à água e energia.
Em março de 2020, as estimativas do número total de pessoas em situação de rua no Brasil eram de aproximadamente 221.869[1] pessoas, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no entanto, há municípios, que neste período de pandemia, o número deste segmento da população mais que dobrou e a situação está ainda mais dramática, com famílias inteiras, mulheres, crianças e idosos, vivendo em situação de rua.
O número de favelas no Brasil dobrou nos últimos dez anos, de acordo com dados do IBGE[2]. Entre 2010 e 2019, a quantidade de aglomerados subnormais, como favelas e palafitas, foi de 6.329 em 323 municípios para 13.151 em 743 cidades. Essas moradias são caracterizadas por um padrão urbanístico irregular e pela falta de saneamento básico. Hoje, 14 milhões de famílias vivem em favelas, ou seja, mais de 60 milhões de pessoas! Apesar de o programa Minha Casa, Minha Vida ter construído cerca de cinco milhões de moradias entre 2009 e 2018, a favelização brasileira ganhou força com a pandemia e o aumento do desemprego[3].
Este quadro de exclusão e violência presente nas áreas urbanas se agravou, com certeza, neste período de pandemia, com o aumento da fome, do desemprego e da informalidade. Segundo dados do IBGE, de setembro de 2021, o país alcançou uma taxa de informalidade de 40,8% no mercado de trabalho no trimestre móvel até julho, com 36,29 milhões de trabalhadores atuando informalmente, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua)[4].
Embora haja essa perceptível piora no quadro dos indicadores sociais, é preciso aprofundarmos as causas estruturais e históricas desta iniquidade, que nos remetem ao violento processo de colonização e aos mais de 300 anos de escravidão, que conformou este iníquo modelo de segregação e injustiça.
Por isso, neste momento, são fundamentais as palavras proféticas do Papa Francisco: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem-terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”, declarou, perante trabalhadores precários e da economia informal, migrantes, indígenas, sem-terra e pessoas que perderam a sua habitação[5].
Assim, é urgente e necessária a presença articulada de uma Igreja comprometida com o enfrentamento das causas que acentuam a marginalização de milhões de famílias em nosso país, relegadas a áreas insalubres, violentas e miseráveis.
Sabendo que a Igreja cresce “por atração” (DAp 159), pela vivência da Boa Nova de Jesus no serviço e na doação, as pessoas se aproximam e aderem ao Evangelho, frequentemente, quando são alcançadas por essa Boa Nova nas situações mais diversas e vulneráveis da vida. Nas realidades de sofrimentos, no cotidiano da sobrevivência dos empobrecidos/as, a presença efetiva e afetiva da Igreja mais que conforta, gera identificação com o Deus da Vida, que vem trazer um mundo de irmãos e irmãs, nascendo novos discípulos em uma Igreja em saída para as periferias geográficas e existenciais.
Atentos a isso, vemos, todavia, uma grande ausência da presença da Igreja Católica nas periferias de nosso país que, em contrapartida, cada vez mais tem “bolsões de pobreza” em situações mais graves e críticas. Urge a Igreja ser mais próxima, servidora, no cuidado e na misericórdia que transformam, nessas realidades mais periféricas de nosso país. O Brasil, marcado pela desigualdade e injustiça sociais, paradoxalmente se diz cristão; falta-nos uma evangelização que toque mais a vida, seja realmente encarnada e, para tanto, precisa “começar pelos últimos” (EG 48).
Esta “conversão pastoral” (DAp 365-372) nos pede uma presença mais efetiva nas favelas, vilas, ocupações, cortiços… onde milhões se encontram, convivem, com valores e potencialidades, juntamente de carências e exclusões de direitos fundamentais, como o direito à moradia, para recomporem as energias, conviverem dignamente e cultivarem as relações. A “moradia”, o “lar”, é tão importante na vida que o discípulo pergunta “Mestre, onde moras?” (Jo 1,38), e Jesus é conhecido pela localidade onde cresceu, conviveu e se desenvolveu, Nazaré. Então, em vista de garantir relações integradas nas diversas dimensões, urge acompanhar, assumir e participar da luta pelo “direito à cidade”, de convivência urbana saudável, com os acessos aos serviços e as oportunidades fundamentais garantidos. Trata-se da promoção da vida em seu todo (Jo 10,10)!
Com essas breves premissas, uma Pastoral da Moradia, da Favela ou do Teto visa ser presença, compromisso e proximidade pastoral da Igreja junto aos milhões marginalizados em nossas cidades, que se encontram em contínuos desalentos. Tais periferias urbanas, frequentemente, não contam com o contato efetivo com a paróquia próxima, situadas, geralmente, em área central, e as presenças pastorais nas periferias, quase sempre, vem se reduzindo a ajudas assistenciais ou visitas pontuais. A Pastoral da Moradia/Favela/Teto intenciona um olhar integral (LS 138-155), em vista de participar da transformação na comunidade periférica, se comprometendo igualmente com a conquista das políticas públicas essenciais (FT 177-179) para uma vida digna em áreas tão maltratadas de todos os modos.
Atualmente, não há uma Pastoral Social articulada, que atue de modo sociotransformador, orgânico e estrutural nas favelas, cortiços, periferias urbanas em nosso país. Temos pastorais com objetivos pontuais, com ações muitas vezes heroicas, mas que não contemplam os anseios e as lutas das pessoas nas periferias, nem abarcam a estrutura urbana, o direito coletivo à moradia, ao saneamento, aos serviços básicos… os quais, quando assegurados, expressam uma comunidade pautada no cuidado, na fraternidade e na inclusão. O documento de estudo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, O Solo Urbano e a Urgência da Paz, lançado em 2016, já apresentava o debate a partir do solo urbano e as cidades é um direito de vida digna no território.
A 6ª Semana Social Brasileira, juntamente com os movimentos que lutam pela moradia e vida digna nas favelas, tem a convicção e trabalhará para uma articulação Pastoral Nacional da Moradia, da Favela ou do Teto: para valorizar as iniciativas que heroicamente se despontaram na Igreja do Brasil nesta direção, bem como impulsioná-las, trazer o “grito” das favelas, cortiços, periferias geográficas em geral (que são tantas) para o seio da Igreja e, igualmente, fomentar a criação da Pastoral da Moradia, da Favela ou do Teto nas Dioceses e Arquidioceses ao longo de nosso extenso e desigual país, numa manifestação mais concreta de uma espiritualidade libertadora. É o “grito” dos milhões de empobrecidos e o “grito” do Evangelho que precisamos escutar, em sinodalidade, e corresponder pela ação pastoral sociotransformadora.
Brasília, 04 de fevereiro de 2022.
Pela Equipe da Articulação:
Benedito Roberto Barbosa (Dito) advogado da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo e articulador da campanha Despejo Zero e frei Marcelo Toyanski Guimarães, do Serviço de Justiça, Paz e Integridade da Criação, dos Capuchinhos