A imagem que ilustra este artigo mostra o cemitério público de Manaus, Nossa Senhora Aparecida, localizado no bairro Tarumã, em 13 de novembro de 2020 (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Na primeira onda de Covid-19 (março a agosto de 2020), Manaus ficou marcada pela forte disseminação do Sars-Cov-2. A rede médico-assistencial saturou, resultando em explosivo número de mortes e subsequente colapso do sistema funerário, marcado por enterros desumanos, em valas coletivas, de parte das mais de 2.500 vítimas com a Covid-19 confirmada como causa de morte ou até mesmo de pessoas que não morreram especificamente pela doença, mas que tiveram suas vidas abreviadas devido ao contexto caótico, sobretudo em abril e maio de 2020, conforme se observa na Figura 1.
Figura 1. Taxas mensais de mortalidade por Covid-19 durante a primeira onda da epidemia e para cada 100 mil habitantes, de acordo com data de ocorrência da morte (março a agosto de 2020), Manaus, Amazonas, Brasil, 2020.
Um exemplo da falência assistencial em saúde, no pico da primeira onda (abril de 2020), diz respeito às 312 mortes confirmadas por Covid-19 até 30 de abril, um valor aproximadamente três vezes menor que as 1.072 mortes confirmadas no fim de janeiro de 2022 para o mesmo período, após investigação e atualização dos dados de mortalidade junto à Fundação de Vigilância em Saúde Dra. Rosemary Costa Pinto (FVS-RCP), responsável pela promoção e proteção à saúde da população no estado.
Embora o número atual de mortes confirmadas durante a primeira onda seja notadamente maior que os minguados registros da vigilância epidemiológica de Manaus e a FVS-RCP durante o auge da crise epidêmica, não significa que todas as mortes tenham sido recuperadas pelas limitadas estratégias das vigilâncias epidemiológicas de Manaus e do estado do Amazonas.
Dados de mortes por causas respiratórias do final de 2021 mostram que o problema da vigilância de óbitos em Manaus está muito além da mera defasagem ou atraso na notificação (quando os sistemas de informação em saúde, por diversos motivos, demoram semanas ou até meses para contabilizar/lançar registros). Isso porque estudo que buscou avaliar o excesso de mortes por causas respiratórias (indicador de subnotificação ou quando os serviços de saúde deixam de contar mortes por determinada causa, devido a falhas na vigilância de óbitos) em indivíduos com 20 anos ou mais em Manaus1, durante o período de 23 de fevereiro a 8 de agosto de 2020, mostrou que entre as oito metrópoles avaliadas no estudo, Manaus foi a que a apresentou o maior excesso de mortes, com 758% mais óbitos por causas respiratórias do que o esperado.
O referido estudo mostrou um total de 2.653 mortes em excesso por causas respiratórias em Manaus e, mesmo descontando o total de mortes capturadas pelo Ministério da Saúde em janeiro de 2022 (2434), é possível notar que em torno de 9% delas não são explicadas diretamente pela Covid-19, dando uma ideia das centenas de mortes que podem ter ocorrido durante a epidemia em Manaus e que deixaram de ser contadas como tal, evidenciando o conhecido problema da subnotificação.
Apesar de uma das principais recomendações do estudo para as autoridades sanitárias ter sido a revisão das causas de mortes associadas a sintomas respiratórios, em cidades como Manaus, com baixa tradição em vigilância epidemiológica e laboratorial, esse tipo de trabalho segue limitado às investigações de mortes em domicílio (pequena parte do total de mortes que ocorrem), de responsabilidade da Prefeitura de Manaus. Portanto, esse trabalho de extensa revisão das declarações de óbito (D.O) jamais foi efetuado pelas unidades de saúde responsáveis, em geral hospitais ou serviços de pronto atendimento que estão sob a gestão do governo estadual.
É importante esclarecer que o Centro de Emissão de Declaração de Óbito por Causa Natural em Domicílio (CEDO) foi implantado apenas em 18 de maio de 2020, por pressão da sociedade e determinação judicial, após o colapso da rede médico-assistencial e em pleno agravamento da geração de dados sobre mortes, em especial por Covid-19.
Por outro lado, o Serviço de Verificação de Óbito (SVO) que, em linhas gerais, tem como objetivo qualificar a vigilância de óbitos, bem como a determinação das causas de morte natural (exclui mortes por violência, acidentes e suicídios, por exemplo) e o aprimoramento do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), segue sem ser implantado no Amazonas, apesar do histórico problema no que diz respeito à geração de informações fidedignas de mortalidade da população 2.
Não há dúvidas de que o problema da baixa qualidade e da oportuna disponibilização dos dados sobre mortalidade, tal qual os de casos novos e de internações por Covid-19, não apenas comprometem a credibilidade, como também oportunizam o uso de dados defasados e/ou subnotificados para a geração de tomada de decisão que tende a minimizar os efeitos de epidemias como a causada pelo novo coronavírus. Infelizmente, esse tipo de problema perpetua um ciclo vicioso de erros, pois dados de má qualidade e defasados resultam em tomada de decisão sanitária inadequada e/ou tardia e, finalmente, em sequenciais e violentos ciclos de contágios e mortes evitáveis.
O exemplo de Manaus durante a pandemia de Covid-19 é emblemático, pois devido ao fraco desempenho das vigilâncias epidemiológica, em especial a laboratorial, e à negligência de diferentes autoridades e de parte da população, os catastróficos efeitos da segunda onda foram repetidamente ignorados, em que pese os alertas de parte pouco valorizada da comunidade científica 3,4 e de trabalhadores de saúde, cientes da retomada de contágios e mortes por Covid-19 em Manaus a partir de setembro de 2020.
Conforme se observa na Figura 2, há um significativo aumento na taxa de mortalidade por Covid-19 em Manaus em setembro de 2020. A partir de então, a epidemia segue evoluindo até atingir valores ainda mais altos em dezembro, já sob importante influência da até então desconhecida variante de preocupação Gama (P.1)5, e alcançar o catastrófico pico da segunda onda em janeiro de 2021, ocasião em que foram registrados em torno de três mil mortes por Covid-19 e taxas de mortalidade aproximadamente três vezes maiores do que à observada no pico da primeira onda, em abril de 2020 (Figura 1).
Figura 2. Taxas mensais de mortalidade por Covid-19 durante a segunda onda da epidemia e para cada 100 mil habitantes, de acordo com data de ocorrência da morte (setembro de 2020 a novembro de 2021), Manaus, Amazonas, Brasil, 2020.
Apesar da taxa de mortalidade por Covid-19 ainda ser consideravelmente alta em março de 2021, o governo do Amazonas seguiu promovendo precoces relaxamentos em relação às medidas que visavam conter a disseminação do novo coronavírus. A partir de junho, as taxas de mortalidade se estabilizaram em patamares relativamente baixos e iniciou-se uma queda ainda maior de agosto em diante (início da vacinação de adolescentes de 12-17), até estabilizar em valores próximos a um para cada 100 mil habitantes, em outubro e novembro de 2021.
No fim de novembro de 2021, uma nova linhagem do Sars-Cov-2 passa a ser classificada como variante de preocupação (VOC) pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a Ômicron, que se espalhava velozmente pela Europa, até ser detectada no Amazonas em dezembro.
Desta vez, o problema da subnotificação novamente viria a cobrar um preço alto à população de Manaus, pois já estava em curso uma silenciosa disseminação do novo coronavírus em dezembro de 2021, tardiamente valorizada pelas autoridades sanitárias e pela população, a partir da segunda semana de janeiro de 2022, quando uma violenta e inédita disseminação viral assolou Manaus, pela terceira vez seguida. Em poucas semanas a ocupação de leitos clínicos aumentou mais de 10 vezes. Em seguida, observou-se forte aumento de pacientes em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e, já no fim de janeiro de 2022, foi a vez das mortes por Covid-19 aumentarem substancialmente, embora em patamares drasticamente menores do que aqueles do auge da segunda onda.
No início de fevereiro, já haviam sido contabilizadas em torno de 125 mortes por COVID-19, durante janeiro de 2022, um valor 33% maior que o total de mortes registradas entre setembro e dezembro de 2021 (94), deixando claro o volúvel número de mortes evitáveis que voltaram a ocorrer em Manaus.
Tal como observado em idosos de Manaus 6, é muito provável que as elevadas coberturas vacinais em grupos de maior risco para o desenvolvimento de casos graves e óbitos tenha evitado novo colapso nos hospitais, apesar da forte pressão na rede ambulatorial e dos mais de 700 pacientes internados no fim de janeiro.
Outro fato chamou atenção, para além da repetição dos mesmos erros das autoridades sanitárias e de parte da população em relação à contenção da circulação viral em Manaus, o repetitivo e danoso problema da defasagem de dados e muito provavelmente da subnotificação de mortes por Covid-19 em janeiro de 2022. Isso porque a última atualização dos dados de Manaus junto ao Ministério da Saúde, em 25 de janeiro de 2022, mostrava que a cidade tinha 49 mortes confirmadas por Covid-19 entre 11 e 24 de janeiro. No entanto, o boletim diário da FVS-RCP do mesmo dia 25 de janeiro de 2022 dava conta de apenas 36 mortes ou da expressiva defasagem de 36%.
Certamente, o indicador de mortalidade é apenas parte da matriz do indicador usado pela FVS-RCP para efetuar a avaliação de risco da Covid-19 no Amazonas. No entanto, deixa claro o quão limitada se torna essa estratégia diante de tamanhos problemas com os dados referentes à evolução da epidemia no estado. Talvez por isso, a mesma FVS-RCP tenha mudado a classificação de risco do Amazonas apenas no fim de janeiro de 2022, após as explosões de casos novos e de internações em leitos clínicos, bem como do forte aumento na ocupação de leitos de UTI e, sobretudo, de mortes por Covid-19, tal como observado no fim de 2020, antessala do caos das mortes por asfixia em Manaus.
Caso nada extraordinário ocorra, como o surgimento de nova versão do Sars-Cov-2, com amplo poder de disseminação e/ou que burle substancialmente nosso sistema imunológico, seja pela imunidade (defesa) adquirida mediante nosso principal aliado na pandemia, as vacinas, ou até mesmo por infecção natural prévia, é pouco provável que tenhamos graves problemas sanitários nos próximos 60 ou 90 dias em Manaus, em que pese a preocupante investigação de nova linhagem da Ômicron pela OMS, a “BA.2”.
Finalmente, Manaus pode sair da terceira onda nas próximas quatro ou seis semanas, com um saldo amplamente negativo em termos de efeitos residuais sobre a saúde física e mental das pessoas que de alguma maneira foram impactadas durante a epidemia. Ademais, ocorreram milhares de mortes evitáveis, bem como irreversível desgaste ou baixas entre os trabalhadores de saúde e fraca incorporação de lições e aprendizados sanitários.
Por: Jesem Orellana
Fonte: Amazônia Real