Reações ao estudo publicado na revista Science, mostrando a ilegalidade na agropecuária brasileira, confirmam as “maçãs podres” do agronegócio mencioandas no título do estudo. Parte do setor prefere atirar no mensageiro ao invés de acolher os fatos e buscar soluções pautadas na ciência e no diálogo construtivo.
Tiago Reis*
Na último dia 16 de julho, cientistas brasileiros e de outras nacionalidades publicaram um estudo que separa o joio do trigo no agronegócio brasileiro. Trata-se de uma análise metodologicamente robusta, que combina bases de dados enormes como o Cadastro Ambiental Rural, as Guias de Trânsito Animal, dados de comércio exterior e imagens de satélite que fotografam, objetivamente e sem ideologias, a situação do uso da terra em diferentes momentos ao longo do tempo. Essas fotorafias indicam se há floresta, cerrado, pasto ou campo de soja, por exemplo, e se houve mudanças entre uma foto e outra. A complexa pesquisa foi liderada por cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais. Ela envolveu vários campos do conhecimento e cientistas de diversas instituições do mundo, foi revisada por outros cientistas, de forma isenta, e referendada por uma das revistas mais sérias e prestigiadas, a Science. Entre os principais resultados, o estudo mostra que 20% da soja e da carne exportadas para a União Europeia podem estar associadas ao desmatamento ilegal.
A reação de associações do setor agropecuário é estarrecedora e desconectada da realidade. As entidades do agronegócio estariam procurando falhas metodológicos no estudo para descredibilizá-lo. O estudo apresentaria uma visão distorcida da produção brasileira. Fazendas inteiras estariam sendo penalizadas por cometerem “apenas pequenos desmatamentos ilegais em pequenas partes”, não na propriedade inteira. Além disso, levianamente, acusam a ciência de ponta produzida por uma instituição pública brasileira de ensino e pesquisa, co-financiada por instituições estrangeiras transparentes e de credibilidade, de estar a serviço de interesses protecionistas de outros países. Como Roberto Smeraldi, brilhantemente, explicou em sua coluna, este argumento é uma “lenda rural”. Alegar protecionismo estrangeiro a commodities baratas é uma ignorância que despreza a própria lógica capitalista de buscar oferta abundante, alternativas de compra e preços baixos.
O ataque ao mensageiro, ao invés do uso da ciência e dos dados a seu favor, confirma a tese que propõe a existência de “maçãs podres” contaminando um setor crucial para o Brasil e o mundo. Esse grupo de “maçãs podres” parece só aceitar a ciência quando lhe convém. Pretende combater a ciência e a realidade material dos fatos demonstrados por imagens de satélite – que não têm ideologia – com mentiras, ignorância, preconceitos, “lendas rurais” e desinformação. Prefere atacar cientistas à sentar-se à mesa com estes para construir soluções em conjunto. O que não percebem é que o estudo contribui com agronegócio brasileiro, propondo melhorar e reduzir riscos futuros, como redução nas chuvas que abastecem a produção, e que podem ocorrer devido ao desmatamento.
Preferem receber o estudo como um ataque e não como informação útil.
Essa atitude negacionista de fatos e de guerra à razão se manifesta no Brasil já há algum tempo. Nas últimas semanas, entretanto, esse comportamento tem aparecido com mais vigor em demonstrações profundas de sincericídio e de desconexão com a realidade. Dentre vários exemplos, destaca-se a intenção explícita do ministro de combate ao meio ambiente, Ricardo Salles, de “passar a boiada”. Depois disso, empresários pediram ao vice-presidente, Hamilton Mourão, medidas de proteção à Amazônia para preservar seus negócios, assim como investidores e gestores de fundos internacionais trilionários. E sabem como o governo respondeu? Disse que vai preparar um pacote de medidas contra fuga de investidores por gestão ambiental, incluindo, pasmem, campanha publicitária e viagens de embaixadores. Em outras palavras, o governo acredita que o desmatamento e a destruição socioambiental do Brasil se combate com propaganda na Europa, sem efetivamente apresentar ações concretas.
Por outro lado, associações e coalizões, como a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) e a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, se colocam no outro espectro do agronegócio. Acolhem dados e informações. Assumem sua responsabilidade nos problemas e seu papel na construção de um Brasil próspero e harmonioso em suas relações entre produção, sociedade e meio ambiente. Como disse o ex-ministro da agricultura, Roberto Rodrigues, em sua coluna do dia 12 de julho, “nossos pés estão sujos de desmatamento, invasões e grilagens de terras”. Segundo ele, o agronegócio brasileiro precisa “ter vergonha na cara” e assumir seus defeitos para, então, ser parte ativa da solução. O agronegócio precisa tratar seus problemas com ciência, diálogo construtivo, cidadania e maturidade. Ao que acrescento, nós cientistas e pesquisadores somos aliados, não inimigos. As lideranças do agronegócio deveriam acolher as pesquisas científicas sérias e relevantes que tratam de problemas vitais não só para o Brasil, mas para o mundo, ao invés de atirar nos mensageiros e culpá-los por seus problemas. Os culpados pela degradação socioambiental brasileira e pela onda mundial de críticas e boicotes são os grileiros, desmatadores, invasores de terras, garimpeiros e madeireiros ilegais, não os cientistas que levantam e analisam dados para informar a sociedade.
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* Tiago Reis é pesquisador em sustentabilidade de cadeias agropecuárias na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Trabalhou no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), com pesquisa, advocacy e coordenação de projetos socioambientais. Atuou como articulador institucional em relevantes fóruns multissetoriais da política ambiental brasileira, como o Grupo de Trabalho da Soja e a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura. Foi um dos articuladores do movimento de mais de 600 cientistas europeus que, em 2019, cobrou da Comissão Europeia mais rigor em critérios de sustentabilidade no acordo comercial UE-Mercosul.