O que realmente não toleram as pessoas que não toleram “erros de português”? (Reflexões sobre a Prisão Classe)
Algumas das pessoas mais consientes e politizadas que conheço, que jamais discriminariam alguem por sua raça, cor, credo, genero, orientação sexual, etc, são as que tem mais orgulho de alardear seu imenso preconceito linguístico: dizem que “brocham na hora com um erro de portugues”, jamais levariam para apresentar a mãe um namorado que falasse “Cráudia”.
Mais o que está por trás de tanta ojeriza? O que realmente não toleram as pessoas que não toleram “erros de português”?
O que não toleram é o Outro: a pessoa diferente, a que veio de longe, a que fala com sotaque desconhecido e, em especial, a que é mais pobre. Não tem como falar de língua sem falar de classe: hoje, dizer que não toleramos “erros de português” é uma das maneiras mais socialmente aceitáveis de dizer que “odiamos pobre!”
Não existe isso de erros de português
Não existe isso de erro de portugues.. Ou melhor, até existe, mas são cometidos por pessoas falantes de outras línguas tentando aprender português. Quem é falante nativa de português por definição domina o português. Se ela fala de um jeito X (mesmo se esse jeito X parecer errado e até incompreensível para outras pessoas) é por que esse jeito era falado pelas pessoas à sua volta enquanto crescia e hoje é mutuamente compreensível entre ela e as outras falantes com quem se comunicam e interagem. O que se pode cometer, são desvios em relação à ortografia, à gramática, etc, de outras variantes da língua.
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Nem todas as variantes são criadas iguais
Cresci em uma praia de surfistas e minha língua-mãe (uma delas!) é o surfistês carioca. Até hoje, uma palavra que faz parte do meu vocabulário e das pessoas que cresceram comigo é “haole”. Demorei muito pra descobri que essa palavra era incompreensível às vezes até para pessoas de bairros próximos — mais por outro lado, que era compreensível para surfistas em todo mundo. (Pra mim, criança, era só uma palavra como todas as outras!) Todo jargão ou gíria é por definição exclusionário e a palavra haole mais ainda: na prática, ser haole é justamente não conhecer a palavra haole. Surfistas são muito territoriais e tendem a sempre surfar na mesma praia. Haole então é a surfista de outra praia, a pessoa que não surfa aqui, de fora, estrangeira.
Se uma pessoa da favela, por exemplo, seria haole na praia, por não dominar aquela variante específica do portugues, uma pessoa surfista seria igualmente haole, ou melhor, “bacana”, “pleiba”, “maurício”, etc, no morro, onde ela também não domina os código lingüístico. Não é nem pior nem melhor dominar ou ignorar essa ou aquela variante do português. Somos todas “analfabetas funcionais” em infinitas variantes da nossa própria lingua. A diferença é o capital sociocultural de quem fala: enquanto que o código do surf é associado com pessoas loiras e bronzeadas, a variante das moradoras de favela é “gíria de marginal”.
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Não existe isso de norma culta
Se digo que não existe erro de português, somente desvios em relação a diferentes variantes da língua, uma pessoa poderia responder:
— Ok. Então é importante cometermos o mínimo possível de desvios em relação a variante chamada de ‘norma culta’ não?
Mas qual norma culta? Sempre que me perguntam, se pode isso ou aquilo (“10% das pessoas trouxe” ou “10% das pessoas trouxeram”, “brocha” ou “broxa”), e eu dou a mesma resposta: só o fato da dúvida ter surgido já indica uma fortissima probabilidade de ambas as formas serem aceitáveis. Por exemplo, se me perguntam como usar “onde” e “aonde”, eu posso até dar a explicação tradicional mas também vou dizer que na prática no Brasil de hoje, as duas palavras são usadas intercambiavelmente. Algumas vezes a pessoa fica indignada, e responde:
— Não de acordo com a norma culta, né, Alex? Eu quero saber o certo!
Esse é o problema: quem determina esse “certo” da “normal culta”? Alguns gramáticos preescrevem uma regra bem específica para onde/aonde e determinam que na norma culta do português é assim e pronto. Mas em seus textos, músicas e poemas, vários dos nossos grandes nomes, como Machado de Assis e Chico Buarque e Manuel Bandeira, quebraram essa tal regra repetidas vezes. E aí? Se Machado e Chico e Bandeira “dizem que pode”, ou seja, usam; se falantes razoavelmente cultas, como eu e minha interlocutora em dúvida, não sabemos qual usar ou dizemos que tanto faz; e se alguns gramáticos prescritivistas que se arrogam donos da lingua dizem categoricamente que não…. o quê fazer?
Não conseguimos descobrir qual é o certo, mas descobrimos talves uma coisa muito mais importante: que não existe consenso sobre essa tal norma culta. (Eu, pessoalmente, vou estar sempre do lado de Machado, Chico, Bandeira contra qualquer ditadorzinho da gramática.) Então, quando encontrarmos o próximo “guardião da norma culta” querendo nos impor suas regras sobre o nosso uso de nossa língua, cabe perguntar: guardião de qual norma culta? com que direito?
Não existe a “língua portuguesa” de um lado e as suas variantes do outro: uma lingua é o conjunto das suas variantes. Todas as falantes nativas de portugues dominam o português. Nenhuma falante nativa de português é pior que outra se não domina, além de sua própria língua, também as intrincadas regras ortográficas e gramaticais das diferentes variantes da norma culta. A “norma culta escrita” é somente uma dessas entre muitas.*
[*Essa discussão específica, com todas as citações de Machado, Chico e Bandeira “errando” o aonde, está no terceiro capítulo de Preconceito linguístico. O que é, como fazer (1999) de Marcos Bagno.]
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A língua é uma questão de classe
Falar de língua é falar de classe, e de poder, de subalternidade. Quando as pessoas comessam a discutir a língua, estão sempre discutindo tudo, menos a língua. O uso da língua é uma das mais eficientes ferramentas de opressão, de silenciamento, de submissao. Pelo uso da língua, marcamos e identificamos a nossa imensa desigualdade social: pelo uso da língua, sabemos quem são as pessoas privilejiadas e quem são as subalternas, as outras, as feias, as que moram longe, as caipiras.
Aqui, no sudeste, região mais rica do Brasil, muitas pessoas fazem pouco do sotaque nordestino como por exemplo falar “oitcho” ao invés de “oito”. Aparentemente, é engraçado, ridículo, errado, atrasado, etc etc, pronunciar um “tch” aonde só deveria a ver um “t”. Entretanto, essas mesmas pessoas, ao falarem a palavra “titia”, pronunciam “tchitchia” — o mesmíssimo fonema de “oitcho”. (Os cariocas apenas forçam mais esse chiado, mais os paulistas pronunciam o mesmo fonema. Para pronunciar essa palavra sem o “tch”, seria preciso pronunciar o “t” com a língua entre os dentes.) Claramente, o problema não é pronunciar “tch” ao invés de “t”: o problema é a pessoa ser nordestina.*
Eu nunca vi hábito lingüístico de pessoas ou regiões ricas ser estigmatizado como erro. Ninguém vira o olho pra reclama de como as pessoas do Morumbi falam, ou para faze pouco do sotaque do Leblon. Não é por que essas pessoas falam certo: é por que são essas pessoas que decidem o que é o certo. Às vezes alguma pessoa amiga incorpora Caco Antibes e me desafia:
— Mas Alex, você tem que concordar que pobre fala portugues todo errado!
E eu respondo:
— Concordo! Mas é uma tautologia. Não é que a pessoa mais pobre fala errado a sua própria língua nativa, o que por definição seria impossível, mas simplesmente que a variante do português falada pela pessoa mais pobre é considerada errada justo porque é falada por pessoas mais pobres!
[*O exemplo está desenvolvido no primeiro capítulo de Preconceito linguístico. O que é, como fazer (1999) de Marcos Bagno.]
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A língua é orgânica, a ortografia é política
Assim como uma resseita de bolo não é um bolo e um mapa mundi não é o mundo, a ortografia não é a lingua. Talvez mais importante, não só os bolos, e o mundo, e as línguas, podem existir sem as receitas, os mapas e os manuais de redassão, como também eles existiam antes de existirem receitas, mapas e manuais de redação. As gramáticas, dicionários, etc, existem para descrever como é a língua que nós, as pessoas falantes, já usamos, e nunca para nos dizer-nos como deveríamos usar nossa própria língua. Uma gramática prescritiva faz tão pouco sentido quanto uma “cartografia prescritiva”: imaginem um mapa que, ao invés de descrever o Brasil como ele é, acressenta algumas baías à costa do Rio Grande do Sul, por que, a final, não tem ancoradouro nenhum entre Laguna e Rio Grande, assim fica impossível velejar! Mais do que isso, uma língua é uma construção milenar e coletiva.Falar em erro de portugues faz tão pouco sentido quanto falar em “erro de continente” ou em uma flor errada. O continente, a flor, a língua não tem como estar errados. Eles apenas são.
Porém, se a língua é um fenômeno cultural e orgânico, a ortografia, gramática, etc, são decisões politicas, que pode ser mudadas de acordo com os ventos políticos de uma época — tanto que já tivemos diversas reformas ortográficas e, hoje, em Portugal, ainda se está debatendo ferosmente nos jornais o acordo ortográfico que aqui aceitamos sem polêmica.
Igualmente, o “bom português”, as regras de estilo, “os erros que doem no ouvido” são questões sociais, quase sempre invariavelmente ligadas a classe social de quem fala e de quem escuta e julga. Afinal, nem todos os “erros” são iguais: quase sempre, os “erros que doem no ouvido” de alguém são aqueles cometidos por pessoas tidas como inferiores, nunca os que ela e as pessoas de sua classe social cometem. Em outras palavras, porque “Cráudia” dói o ouvido, mas flexionar o verbo “haver” não?
Não tem como uma falante nativa estar errada em relação à sua própria língua, ou seja, cometer um erro de português, mas tem como ela estar errada em relação a ortografia e ao “bom português” da variante da língua falada pelas pessoas privilegiadas. Afinal, tanto essa ortografia quanto esse tal “bom português” são convenções sociopolíticas arbitrárias criadas e utilizadas pelas pessoas privilegiadas, em grande parte, para indentificar e excluir as pessoas desprivilegiadas.
Por isso, o ensino da língua portugueza nas escolas, em especial para pessoas desprivilegiadas, têm como objetivo não corrigir o português falado por elas (que, denovo, por definição, nunca está errado) e muito menos para que se adaptem as regras arbitrárias convencionadas pela sociedade que lhes oprime e silencia, mas para que possa se apropriar desse “dialeto do prestígio” e utilizá-lo para melhor lutar por seus direitos, participar da política e dialogar com o poder.*
O maior de todos os haoles é sempre a pessoa mais pobre. A Prisão Classe se chama Classe justamente porque a desigualdade social é parte integrante de todos as outras: o mundo é misógino com todas as mulheres, mas as pobres sofrem mais, e assim sucessivamente.
[*Quem fala sobre “dialeto do prestígio”, entre outras, é Magda Soares, em Linguagem e Escola – Uma Perspectiva Social, de 1986.]
Pessoas que corrigem pessoas
Utilizar a lingua para julgar, rotular, discriminar já seria ruim o sufissiente. Não satisfeitas, algumas de nós fazem pior: corrige publicamente ao mesmo tempo humilhando alguém e também pavoneando seus próprios conhecimentos. As rudes praticantes dessa arte negam: “foi na boa”, “pra ajudar”, “gosto de ser corrigida quando erro”, etc…. Mas, incrivelmente, corregir alguém “na boa” e “pra ajudar” é simples: basta puchar a pessoa para o canto da sala, ou mandar uma mensagem privada, e faze a correção em termos cuidadosos, para que ela não se sinta (ou se sinta menos) inferiorizada ou envergonhada. Quem perde a amiga pra não perder a correção, tem prioridades bastante distorcida.
Quem merece nosso respeito?
Ao ler esse texto, muitas das minhas amigas conscientes e politizadas negaram veementemente que o seu preconsseito linguístico fosse “elitista”. Pelo contrário, respeitam (e lamentam) os “erros” de portugues das pessoas menos privilejiadas. Seu problema, dizem, é outro. Abaixo, um email representativo que recebi:
“Desculpas, mas, sinceramente, tenho preconceito contra aqueles que tiveram acesso a melhores escolas que eu, ou iguais em nível, mas mesmo assim escrevem errado. E eu não consigo encontrar nessas pessoas que eu conheço interesses legítimos que justifiquem tamanho descaso com o estudo de uma coisa que julgo básica — nossa língua. E eu sei que já estou sendo preconceituosa em meu comentário.”
Digamos que possa existir preconceito linguístico desvinculado a preconceito de classe (eu duvido) — mas… e daí? Porque respeitamos mais uma pessoa que investiu horas aprendendo as regras bizantinas da hifenização do que uma que, tendo essas horas para dedicar, preferiu investí-las em dominar outras atividades, sendo uma ouvinte melhor, praticando caligrafia, fazendo origami, surfando, ou literalmente qualquer outra coisa? Porque nos é tão intolerável que outras pessoas tenham outros valores e outras prioridades?
Respondi à minha leitora com uma variação do seu email original, reescrito por uma suposta engenheira capaz de fazer complicados cálculos de cabeça:
“Desculpa, mas sinceramente, tenho preconceito contra aqueles que tiveram acesso a melhores escolas que eu, ou iguais em nível, mas mesmo assim fazem conta errado. E eu não consigo encontrar nessas pessoas que eu conheço interesses legítimos que justifiquem tamanho descaso com o estudo de uma coisa que julgo básica — nossa aritmética! E eu sei que já estou sendo preconceituosa em meu comentário.”
* * *
Porque tanta ojeriza?
Digamos que uma pessoa investiu treze anos de ensino e muito sacrifício para aprender um conjunto de regras intrincadas e arbitrárias, tudo para que nunca passe pela vergonha de ser confundida com “uma ignorante que não sabe falar português”. Se alguém perto dela cometer algum desses erros e não for imediatamente humiliada como “uma ignorante que não sabe falar portugues”, é como se todo aquele esforço tivesse sido em vão. Sempre que uma pessoa que segue as regras (quaisquer regras) ataca violentamente uma pessoa que não fez nada contra ela e que não lhe incomoda em nada, mais que simplesmente não segue aquelas mesmas regras, esse mecanismo está em funcionamento. Poucos comportamentos são mais humanos e mais compreensíveis, e mais nocivos e mais mesquinhos. Mas nossos comportamentos nocivos e mesquinhos devem ser comprendidos não para serem aceitos e perdoados — “somos assim mesmo, fazer o que?” — e sim transformados.*
[*A teoria sobre porque existe tanta ojeriza aos desvios da norma culta está maravilhosamente desenvolvida em Verbal hygiene, the politics of language (1995), de Deborah Cameron. Até ler esse livro, eu nunca tinha realmente entendido o que motivava os ditadores da gramática. E, na verdade, o raciocínio é amplo: ninguém tolera que outra pessoa quebre uma regra que ela se reprimiu para manter.]
Os filhos da manicure, um estudo de caso
Conversando sobre a Prisão Classe com minhas leitoras, recebi a seguinte mensagem:
“Alex, o texto abaixo foi publicado em um grupo que participo. Meu questionamento é se essa pessoa poderia ter indiferentemente qualquer ocupação que quisesse:
‘Pedi indicação de manicures recebi várias e agradeço a que marquei chego na hora meu filho caiu então desmarque mais como não foi nada grave consegui fazer com outra que morava perto ai começo meu tormento ela levo os dois filhos eles colocaram a ração da cadela na água quebraram restos de pisos no chão que eu tinha ficado a manhã inteira faxinando quebraram brinquedos dos meus filhos mijaram no chão do meu banheiro jogaram água no chão da minha cozinha subiram no meu sofá arranharam a parede com carrinho e pra termina o menor derrubo meu microondas no chão e quebro o prato então meninas não levem filho pra casa de ninguém quando não podem controlar sei que não é todas que leva filho na residência e peço desculpas foi só um desabafo’”
Eu entendi tudo no texto citado, apesar da falta de pontuação, mas não entendi a pergunta da leitora. Qual era a dúvida, exatamente?
— Meu questionamento é se essa pessoa estaria apta a desempenhar uma função profissional qualquer. Se ela poderia ser recepcionista, telefonista ou gerente em um hotel.
Na verdade, eu tinha até entendido, mas achei tão improvável que pensei que talvez tivesse lido errado. O relato da moça que contratou a manicure me pareceu perfeitamente lógico, concatenado, compreensível. Não está confuso nem desconexo. Não precisei reler, não tive nenhuma dúvida. Comunica exatamente a experiência que ela quis comunicar.
A autora apenas não usa sinais de pontuação, que são elementos convencionados 100% gráficos que não têm nenhum impacto na língua falada, e, muito menos, na inteligência, cultura, etc, da pessoa que está emitindo a comunicação. Pontuação nada mais é do que representar graficamente as pausas que instintivamente colocamos na fala. Então, um texto que seja lógico e articulado, e somente não tenha pontuação, não indica de modo algum uma pessoa que seja incapaz de manter um emprego, mas somente uma pessoa que não tem o hábito da escrita. Em sua fala, ela deve ser tão articulada quanto qualquer falante nativa. Pontuação é uma invenção recente: Eurípides e Platão, Virgílio e Lucrécio, todos os autores da Bíblia, escreveram sem pontuação, exatamente como essa moça.
Pelo comentário inicial da minha leitora, parece que sua perplexidade é: como alguém que fala assim (por exemplo, desabalada) conseguiria ser uma recepcionista e se comunicar com hóspedes? A resposta, naturalmente, é que ela não fala assim, e nem seu relato não está desabalado: o texto apenas não indica graficamente as pausas. Ele nos parece uma correria desabalada e sem fôlego porque foi assim que nós nos treinamos para lê-lo: é uma convenção do nosso tipo de leitura, viciado em pontuação, quase dependente dela.
Quando os textos não tinham pontuação e as pessoas os liam em voz alta umas para as outras, elas não saíam lendo desabaladamente e sem pausas: elas inseriam as pausas elas mesmas, a medida que iam avançando. Se lermos com generosidade, sem julgamento, nos despindo das convenções que nos enfiaram pela goela abaixo, o lugar de cada pausa se revela de maneira quase autoevidente.
Além da falta de pontuação, o texto da moça tem pouquíssimos problemas, todos menores, e nenhum que dificulta a compreensão de seu conteúdo:
- Confundir mas/mais; uma distinção que, assim como a pontuação, só acontece na linguagem escrita e não na falada, ao menos em boa parte do Brasil;
- Omitir a letra final de algumas palavras quando elas não são pronunciadas; mostrando que, mais uma vez, quando a linguagem falada e escrita divergem, ela segue a falada, mas sempre de modo consistente e compreensível;
- Escreveu um “é” onde deveria ter sido “são”, algo facilmente compreensível pelo contexto.
Se o texto tivesse sido lido em voz alta, o único “erro de português” que perceberíamos teria sido esse último. Aos nossos ouvidos, seria um texto quase perfeito: elitista são nossos olhos. Já trabalhei como editor, já fui professor de redação, confiem nesse profissional da palavra: um texto que só precisa de pontuação para ficar perfeito é um texto ótimo; os textos realmente ruins, truncados, confusos, precisam ser reescritos do começo ao fim. Para demonstrar, aqui vai o texto original, minimamente reescrito: somente acrescentei a pontuação e as letras entre colchetes.
“Pedi indicação de manicures, recebi várias e agradeço.
A que marquei chego[u] na hora.
Meu filho caiu, então desmarque[i].
Ma[i]s como não foi nada grave, consegui fazer com outra, que morava perto.
A[í] começo[u] meu tormento: ela levo[u] os dois filhos, eles colocaram a ração da cadela na água, quebraram restos de pisos no chão que eu tinha ficado a manhã inteira faxinando, quebraram brinquedos dos meus filhos, mijaram no chão do meu banheiro, jogaram água no chão da minha cozinha, subiram no meu sofá, arranharam a parede com carrinho e, pra termina[r], o menor derrubo[u] meu micro[-]ondas no chão e quebro[u] o prato.
Então, meninas, não levem filho pra casa de ninguém quando não podem controlar.
Sei que não é [são] todas que leva[m] filho na residência e peço desculpas, foi só um desabafo.”
Por fim, não existe língua, nem variante da língua, nem desvio da variante da língua, sem contexto. O texto foi escrito de maneira informal, em um grupo privado, explicitamente como um desabafo: nada indica que a autora de fato ignore as regras de pontuação da norma culta do português ou que não seria capaz de aprendê-las se fosse necessário para conseguir uma ocupação que desejasse. Especialmente empregos como recepcionista, telefonista ou gerente em um hotel, que não exigem muita escrita.
Uma amiga concordou com tudo, menos que a autora do desabafo pudesse conhecer as regras de pontuação, mas que tivesse escolhido não usá-las. Por que alguém escolheria não usar regras que conhece? Simples: porque o custo de usar essas regras varia muito de pessoa em pessoa.
Eu, por exemplo, depois de fazer anos de fonoaudióloga e muitos cursos de impostação de voz, consigo falar sem gaguejar, com dicção perfeita, articulando cada fonema. Só que isso, para mim, tem um custo enorme, exige muito esforço. Gravar o audiolivro do meu Atenção. foi o maior e mais gratificante desafio da minha vida. Enfim, falar bem é algo que só faço quando estou em sala de aula, sendo pago para ensinar, e às vezes, confesso, nem isso. Outro dia, em um churrasco, o tio de um amigo meu, um locutor profissional de dicção perfeita, começou a me sacanear. Como eu podia dar aula gago daquele jeito? Respondi que, em primeiro lugar, não tem nada de errado em uma pessoa gaga dar aula e, em segundo, que eu não gaguejava dando aula. Ele desafiou: ué, se consegue falar sem gaguejar, fala agora! E eu desconversei, pois minha única resposta honesta teria sido: “você não vale o esforço…”*
Voltando à moça do relato, não acho improvável que ela saiba sim as regras da pontuação, mas talvez sem a fluência e facilidade das pessoas que escrevem com frequência. (A falta de outros desvios da norma culta em seu texto indica uma pessoa razoavelmente bem-educada.) Então, para ela, escrever um texto com pontuação talvez exigisse um nível de esforço que, digamos, não valeria a pena investir em um desabafo informal e rápido em um grupo privado. Apenas porque uma pessoa não usou uma ferramenta em uma determinada situação na qual nós a teríamos usado, não podemos presumir que ela simplesmente não possui ou não sabe usar essa ferramenta.
Então, de fato, não consigo imaginar de que maneira esse desabafo nas redes sociais poderia ser usado desqualificar a autora para esses empregos.
[*Uma das maiores vantagens de audiolivros de autoras contemporâneas é a oportunidade de ouvi-las narrando a própria obra. Tantas autoras incríveis fizeram esse esforço por mim que decidi fazer o mesmo por minhas leitoras. O audiolivro do Atenção. saiu pela Tocalivros, produzido pelo incrível Clayton Herringer, a quem agradeço por uma das melhores e mais exaustivas experiências da minha vida.]
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Quebrar a normatividade da língua
Em 2015, lancei no Brasil e em Cuba uma edição traduzida e anotada da autobiografia do poeta afrocubano Juan Francisco Manzano. Por ter nascido escravizado, ele nunca teve educação formal e aprendeu a ler e escrever por conta própria. Mais tarde, quando escreveu uma incrível e comovente autobiografia, o texto naturalmente não seguia a norma culta do espanhol. Infelizmente, quando é traduzido, o texto é sempre corrigido para a norma culta da língua de destino.*
Mas a autobiografia do poeta-escravo é mais que seu conteúdo: a forma da escrita de Manzano é o melhor autorretrato que temos dele e sua maior contribuição à literatura. Seus erros de ortografia, gramática e sintaxe nos inspiram respeito: não são erros, mas sim marcas tão concretas e tão reais da escravidão quanto os lanhos de chicote em sua carne. Corrigi-los significa apagar sua trajetória, silenciar seu sofrimento, rasurar sua vida.
Por isso, ao traduzir Manzano ao português, fiz o oposto: me mantive o mais fiel possível à oralidade do seu texto. Como o resultado final pode ser um pouco difícil de ler, eu ensino um truque. A melhor maneira de extrair sentido de um texto marcado por forte registro oral e pontuação muito irregular é lendo-o em voz alta. Assim, construções antes confusas subitamente farão sentido, os sujeitos vão se atrelar aos verbos corretos e as pausas intuitivamente se revelarão.
Nosso desafio, como pessoas leitoras, é suspender os hábitos adquiridos de leitura silenciosa, abraçar a oralidade da prosa e permitir que o texto fale em seus próprios termos. Quebrar a normatividade de nosso modo de leitura tradicional pode ser difícil, mas a recompensa será experimentar os diferentes caminhos que a literatura em prosa poderia ter seguido se o advento da pontuação não tivesse restringido a diversidade textual. Toda linguagem, mesmo quando opressora, é sempre dialógica: se lermos com cuidado, as brechas cavadas pela fala e pela prática das pessoas oprimidas nos permitem ouvir até mesmo quem não tem voz. Nesse sentido, esse esforço de oralidade é bem mais do que um exercício de autenticidade: é um exercício de alteridade.
Abaixo, um trecho da autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco Manzano, na minha tradução:
“huma tarde sahimos ao jardim durante muinto tempo fiquei ajudando minha ama á colher flores ou transplantar alguns matinhos como pasatempo enquanto o jardineiro andava pr. toda a largura do jardim cumprindo sua obrigaçaõ ao nos retirarmos sem consiensia realmente do qe. fazia peguei huma folhinha, huma folhinha coalquer de botaõ de geranio esta malva estremamente odoroza ia em minha maõ junto com sei la mais o que eu levava distraido com meus versos de memoria seguia minha sinhá á distansia de dois ou trez pasos e caminhava taõ alheio á tudo qe. ia dispedaçando a folha do qe. rezultava maior fragansia ao entrar numa antesala naõ sei com qe. motivo a sinhá retrocedeu, le dei pasagem mas ao pasar por mim le chamou atensaõ o cheiro imediatamente colerica com huma voz fortisima e alterada me perguntou qe. tens nas maõs; eu fiquei morto meu corpo gelou-se num instante e sem poder quasi sustentar-me pelo tremor qe. me deu em ambas pernas, deixei cahir a porsaõ de pedaçinhos no chaõ me tomou as maõs e as cheirou e pegando os pedaçinhos paresiaõ hum montaõ hum matagal e hum atrevimento de nota quebraraõ meu nariz”
[*O texto foi publicado no Brasil pela editora Hedra, com o titulo de Autobiografia do Poeta-Escravo e, em Cuba, pela Ediciones Matanzas, com o título Autobiografia. Lancar esse texto em Cuba, e palestrar para alunas cubanas sobre um de seus grandes autores ignorados, foi um dos maiores prazeres e orgulhos da minha vida. O audiolivro, também produzido pela Tocalivros, foi gravado pelo ator Eduardo Silva; eu narrei os paratextos. Em 2018, o livro foi selecionado pelo PNLD Literário e mais de 90 mil exemplares foram enviados para escolas de todo Brasil.]
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Prizão classe e preconsseito lingüístico*
A ojeriza aos “erros de portugues” ainda é uma das poucas manifestações abertas de elitismo e preconsseito que muitas pessoas pretensamente politizadas e conscientes ainda se permitem fazer. Mas essa ojeriza, na verdade, é por pessoas pobres. Por pessoas que vieram de regiões, de culturas, de classes sociais que não são as nossas. É ojeriza ao Outro. É pura outrofobia. Falar “Cráudia” não diz nada, nem a favor nem contra, sobre a inteligência, cultura, caráter, talento, profissionalismo, etc, de uma pessoa. Já sacanear, discriminar, rotular quem fala “Cráudia” diz muito. Se somos pessoas conscientes e politizadas, se lutamos contra o machismo e o racismo, contra a homofobia e a transfobia, por que não lutarmos também contra o nosso próprio preconceito linguistico? Afinal, quanto valor estamos dando ao conjunto de regrinhas arbitrárias de uma entre as muitas variantes da nossa língua? Não faz sentido militar pela maior inclusão social de pessoas historicamente discriminadas… só para exclui-las por outra porta.
[*Esse texto apresenta diversos erros propositais de gramática, concordância, ortografia, pontuação, etc. Muito obrigado à Amanda Coca, Patricia Gondeck, Fernanda Lizardo e Raquel Siqueira por me ajudar na contrarrevisão.]
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O Curso das Prisões
Em 2023, estou dando o Curso das Prisões.
Em abril, nosso tema foi a Prisão Classe. (Esse texto faz parte das reflexões surgidas em nossas conversas.)
Em maio, estamos conversando sobre a Prisão Patriotismo. Nossa aula expositiva acontece na quarta, 31 de maio de 2023. Antes disso, estamos debatendo sobre Classe e Patriotismo nas nossas conversas livres, no Zoom e no Whatsapp.
Sim, ainda dá tempo de participar. Mais detalhes aqui.
Vem com a gente?