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Por Cleber Lourenço
Durante a gestão de Alexandre Ramagem na Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o setor responsável pelo monitoramento de ameaças extremistas passou por um processo sistemático de esvaziamento, segundo documentos e testemunhos de servidores com acesso direto à rotina da agência. Além da censura a relatórios, Ramagem trocou a chefia do Departamento e o Coordenador-Geral da área porque ambos não aceitavam executar certas demandas. Segundo servidores, a temática não contava com o apoio do Departamento de Operações, que se limitava a registrar manifestações públicas, especialmente as organizadas por apoiadores de Bolsonaro. O trabalho consistia basicamente em reportes sobre incidentes em tempo real e ações de segurança em motociatas, incluindo gastos com a compra de motos.
Um dos casos mais graves envolve um relatório sobre o grupo conhecido como “boinas vermelhas”, formado por reservistas do Exército com discurso armamentista e atuação violenta nas manifestações que começaram na noite de 6 de setembro de 2021 e se estenderam pelos dias 7 e 8. A direção da Abin vetou a publicação do documento por meio de sucessivas exigências de alteração no texto e pela ausência de encaminhamento para sua difusão. O primeiro relatório foi liberado apenas entre agosto e setembro de 2022, após a substituição na direção. Foi enviado à Polícia Federal e a órgãos militares.
Em dezembro daquele ano, a direção da Abin foi pressionada por representantes dos departamentos envolvidos na posse presidencial a tratar os acampamentos em frente ao QG do Exército como ações de extremismo violento, especialmente após o ataque à sede da PF. Até então, a orientação da cúpula era tratar os manifestantes como pacíficos. Quando se revelou que a área de extremismo não havia recebido dados de operações, a direção cedeu e autorizou o compartilhamento de informações — inclusive as que apontavam a presença dos boinas no acampamento. Foram então produzidos os relatórios difundidos no dia 27 de dezembro, que abordavam o panorama da posse e a presença de grupos extremistas, conforme consta na lista de relatórios.

Alexandre Ramagem
Servidores da Abin foram afastados
Apesar dos alertas e relatos sobre o envolvimento dos boinas vermelhas nos eventos do dia 12 de dezembro e nos atos do 8 de janeiro, o grupo não foi alvo de ações da Polícia Federal.
Além da censura a documentos, servidores que atuavam na produção de análises sobre ameaças relatam ter sido afastados de suas funções, remanejados para setores sem relação com o tema ou deixados sem demanda. Um dos relatos obtidos pela reportagem aponta que as ordens partiam da direção-geral e eram intermediadas por chefes de gabinete e assessores nomeados na época. Esses servidores afirmam que, ao tentar manter o monitoramento de grupos extremistas ativos durante o período eleitoral, encontraram obstáculos internos e receberam orientação para “não insistir” em temas que poderiam gerar atrito com a cúpula da agência.
Durante esse período, a Abin também passou a operar uma rede de transmissão de alertas por WhatsApp. A ferramenta, que substituía os canais oficiais da agência, era usada para repassar informações a grupos internos e externos, inclusive a secretarias estaduais de segurança. As mensagens não eram registradas nos sistemas internos nem seguiam protocolo formal de difusão de inteligência. Segundo um dos relatos, houve casos em que alertas operacionais partiram do plantão da inteligência e circularam por grupos com a participação de Ramagem, membros do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) e operadores políticos ligados ao governo da época.
Em paralelo, a estrutura de análise sobre extremismo violento foi sendo desmobilizada. Documentos internos consultados pela reportagem mostram que a produção sobre ameaças internas caiu drasticamente entre 2021 e 2022, enquanto outras áreas da agência ganharam reforço, como a de segurança institucional e de operações com foco no exterior. A fonte também afirma que relatórios sobre ameaças envolvendo reservistas armados foram ignorados mesmo quando traziam evidências concretas de organização paramilitar.
A permanência de quadros ligados à antiga gestão é vista por parte da base técnica da Abin como um entrave para a recuperação da credibilidade do órgão e a reconstrução da capacidade de atuação da inteligência diante de ameaças internas. “O sistema continua operando com as mesmas peças-chave que desarticularam o setor mais estratégico para conter o extremismo interno. Não é possível reconstruir sem mudar essa estrutura”, afirma uma das fontes ouvidas.
Fonte: ICL Notícias