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Zambelli e Joice: duas faces de um mesmo descarte político

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No universo bolsonarista, poucas figuras femininas ocuparam tanto espaço de destaque quanto Carla Zambelli e Joice Hasselmann. Ambas se tornaram símbolos de uma militância agressiva, disciplinada e absolutamente leal ao projeto de poder de Jair Bolsonaro. Contudo, no mesmo ritmo em que foram elevadas à condição de aliadas centrais, também foram empurradas para o papel de traidoras, culpadas e estorvos quando o bolsonarismo precisou encontrar culpados por seus próprios fracassos. O padrão é conhecido: o bolsonarismo exige fidelidade incondicional, mas cobra um preço alto de quem ousa pensar por conta própria ou, pior ainda, tropeça na disputa interna. Quando isso acontece, a guilhotina digital se ergue – e com mais violência quando o alvo é mulher.

Carla Zambelli vive hoje o mesmo destino que Joice Hasselmann enfrentou em 2019. Após ser uma das deputadas mais votadas do Brasil em 2022, com 946.244 votos, Zambelli foi publicamente responsabilizada por Jair Bolsonaro pela derrota eleitoral. A acusação, feita pelo próprio ex-presidente, ecoou entre aliados e nas redes bolsonaristas, que não tardaram a rotulá-la como uma das responsáveis pelo fracasso eleitoral. Isolada, pressionada e visivelmente abalada, Zambelli declarou recentemente: “É um peso muito grande” – tentando, sem sucesso, dividir o fardo da culpa. A cena remete diretamente ao que Joice Hasselmann viveu em 2019, quando, após um embate com Eduardo Bolsonaro e críticas à ala mais radical do governo, foi sumariamente destituída da liderança do Governo no Congresso.

A semelhança entre os casos não está somente no enredo de ascensão e queda, mas no método. Duas parlamentares combativas, peças-chave na engrenagem que sustentou o discurso bolsonarista nos momentos mais tensos, foram jogadas aos leões quando deixaram de ser funcionais ao projeto. Para o bolsonarismo, a culpa nunca é do líder — é sempre de quem “falhou” na missão. E, quando essa figura é uma mulher, o julgamento costuma vir com um peso ainda maior, amplificado pela crueldade de uma militância que não perdoa nem a própria cria.

Joice Hasselmann: da líder do governo ao linchamento digital

Joice Hasselmann abraçou o bolsonarismo desde seu nascedouro e se tornou, por um tempo, uma de suas principais operadoras dentro do Congresso Nacional. Jornalista de formação, ela foi alçada por Bolsonaro à liderança do Governo no Congresso em 2019, tornando-se a segunda mulher a ocupar esse cargo estratégico — a primeira foi a senadora Rose de Freitas. A escolha por Joice não foi casual: ela sabia comunicar, enfrentava a imprensa com desenvoltura e mobilizava seguidores nas redes. Sua ascensão técnica foi rápida e, num Congresso instável, ela parecia ter se tornado um elo funcional entre o Planalto e o Legislativo. O prestígio, no entanto, durou pouco.

A queda veio com a mesma velocidade com que subiu. Em outubro de 2019, após uma série de desentendimentos públicos com Eduardo Bolsonaro e críticas ao radicalismo da chamada “ala ideológica” do governo, Joice foi destituída da liderança por ordem direta do presidente. As ofensas começaram a se multiplicar, partindo tanto da família presidencial quanto da militância digital que antes a reverenciava. Acusada de traição, alvo de montagens, memes e fake news, ela foi empurrada para fora do núcleo bolsonarista com brutalidade. No auge da ofensiva, Joice denunciou ter sido vítima de um linchamento digital promovido por uma rede coordenada de perfis, Gabinete do Ódio,  o mesmo tipo de operação que ajudou a promover enquanto ainda orbitava o bolsonarismo. O sistema que ajudou a alimentar voltou-se contra ela com a mesma fúria.

Em 2024, em entrevista à Veja, Joice reconheceu: “Confesso que errei”. A confissão veio tarde — seu capital político já havia sido profundamente corroído. Na eleição de 2022, recebeu apenas 13.679 votos, um desempenho pífio diante da projeção que teve quatro anos antes. Sua trajetória é o retrato cruel de como o bolsonarismo premia a obediência e executa a dissidência — e como até os aliados mais leais são descartáveis quando não servem mais à narrativa oficial.

 

Carla Zambelli: da tropa de choque ao bode expiatório

Se Joice Hasselmann foi o braço técnico do bolsonarismo no Parlamento, Carla Zambelli foi o rosto da tropa de choque nas redes. Reeleita em 2022, Zambelli conquistou o coração da militância raiz com uma retórica incendiária e ataques sistemáticos aos inimigos, em especial ao Supremo Tribunal Federal – STF. Desde 2019, protagonizou embates públicos com ministros do STF, viralizou vídeos acusando comunistas imaginários e alimentou teorias conspiratórias com fervor quase religioso. Sua fidelidade ao bolsonarismo parecia inabalável — até ultrapassar o limite da legalidade e se tornar um problema para o próprio líder.

Na véspera do segundo turno das eleições de 2022, Zambelli protagonizou um dos episódios mais desastrosos da campanha: armou-se em via pública e saiu correndo atrás de um opositor pelas ruas dos Jardins, em São Paulo, com a pistola em punho. O episódio, gravado por celulares e amplamente divulgado, tornou-se um marco da radicalização bolsonarista e foi apresentado como símbolo do risco institucional representado pelo entorno do presidente. Ainda assim, Zambelli se reelegeu e continuou defendendo Bolsonaro em todas as frentes. Mas a lealdade não foi suficiente para blindá-la. Em março de 2025, o próprio Jair Bolsonaro rompeu o silêncio e, sem rodeios, responsabilizou Carla Zambelli pela derrota eleitoral. Jogada aos lobos, ouviu do líder a mesma sentença que antes ecoou sobre Joice: a culpa é sua.

A reação foi de abatimento. “É um peso muito grande”, declarou Zambelli à CNN. “Não fui a culpada pela derrota”, tentou se defender. Mas já era tarde. Desde então, tem enfrentado isolamento crescente dentro da própria direita. Foi abandonada por influenciadores bolsonaristas, perdeu espaço na mídia amiga e passou a ser ignorada nas articulações mais relevantes da oposição. A deputada que virou símbolo da ofensiva bolsonarista agora amarga o mesmo destino de outras aliadas: o exílio político silencioso, sob a pecha de traidora, ingrata ou — pior — responsável por desmoronar o castelo de cartas construído em torno de Jair Bolsonaro.

 

Similaridades e diferenças

As trajetórias de Joice Hasselmann e Carla Zambelli revelam, com clareza perturbadora, o padrão de uso e descarte que marca o bolsonarismo. Ambas foram construídas pelo movimento como peças estratégicas em momentos distintos: Joice como articuladora institucional e Zambelli como catalisadora da militância digital. Ambas serviram com lealdade ao projeto político de Jair Bolsonaro, sustentando com vigor as narrativas cuidadosamente construídas, atacando opositores e protagonizando disputas públicas em nome de uma causa que, no fim, as trataria como obstáculos descartáveis. A lógica de expurgo é a mesma: quem deixa de ser funcional, quem demonstra autonomia, quem ameaça desalinhar o coro… vira traidora, culpada ou inimiga.

A diferença entre elas está na forma de atuação e na natureza do capital político acumulado. Joice teve êxito técnico: ocupou a liderança do Governo no Congresso, ajudou a pautar votações e articulou junto ao Centrão. Já Zambelli construiu sua força nas ruas digitais — colecionou votos, engajamento e protagonismo no front da guerra cultural. Uma venceu na lógica institucional; a outra, na lógica eleitoral. Mas ambas, ao deixarem de servir aos objetivos do bolsonarismo, foram descartadas com a mesma frieza, sem qualquer cerimônia.

Zambelli ainda tenta manter algum elo com a base. Recua nas palavras, faz acenos, evita confrontos frontais com o líder. Joice, ao contrário, rompeu de vez — virou oposição declarada, alvo de ódio e apagamento. Mas há um denominador comum inegável: o julgamento público que ambas enfrentam é mais cruel porque são mulheres. A agressividade que as projetou, em homens seria vista como força. Nelas, virou desvio. E quando caem em desgraça, são responsabilizadas pelas ruínas de um projeto autoritário que ajudaram a sustentar, mas que jamais as enxergou como protagonistas legítimas — apenas como instrumentos úteis até segunda ordem.

 

O bolsonarismo como máquina de usar e descartar aliados

O recente caso de Carla Zambelli não é exceção — é regra. O bolsonarismo opera com a lógica implacável de uma máquina que consome seus próprios aliados assim que eles deixam de ser úteis ou se tornam incômodos ao culto da liderança. Desde os primeiros anos do governo, a lista de fiéis descartados é extensa: Gustavo Bebianno, o primeiro da fila, caiu por contrariar os filhos do presidente; Luiz Henrique Mandetta foi execrado por seguir a ciência durante a pandemia; Santos Cruz, general de confiança, virou traidor por divergir da ala ideológica; Alexandre Frota, um dos primeiros rostos da campanha de 2018, foi atacado quando começou a fazer críticas. Até João Doria, que surfou o bolsonarismo na eleição de 2018, passou de aliado estratégico a inimigo declarado. O padrão se repete: quem não se curva, quem ousa pensar, quem ameaça a narrativa… é sumariamente deletado.

A figura de Jair Bolsonaro permanece, em todos esses episódios, como intocável. O líder nunca erra. O fracasso, a derrota, o desgaste — tudo é culpa dos outros. Há sempre um novo bode expiatório para justificar a erosão do projeto. É um culto de personalidade que exige obediência cega e fidelidade incondicional, mas que não reconhece lealdade como valor perene. O bolsonarismo precisa, ciclicamente, produzir traidores para manter sua coesão interna e alimentar a narrativa de cerco e perseguição. E quanto mais alta a posição que o aliado atingiu, mais espetaculosa precisa ser sua queda. É um processo quase ritualístico de expurgo.

Mas quando o alvo é mulher, o ritual é mais cruel. Os ataques deixam de ser apenas políticos — passam a ser sexualizados e covardes. A linguagem da exclusão ganha contornos de humilhação pública. O bolsonarismo não só descarta suas figuras femininas: ele as destrói. A cultura da lealdade absoluta, nesse ambiente, devora seus próprios filhos — e faz questão de que as filhas queimem em praça pública, como exemplo de que não há espaço para protagonismo feminino num projeto que nunca as viu como líderes, mas somente como instrumentos descartáveis de um poder masculino e centralizado.

 

Conclusão: entre o fanatismo e a ruína

Joice Hasselmann e Carla Zambelli são personagens que, mesmo em lados opostos do atual cenário, compartilham a mesma sentença política: foram consumidas pela lógica autofágica do bolsonarismo. Ambas estiveram no centro da engrenagem, defenderam com veemência o projeto, foram aplaudidas pela militância e legitimadas pelo próprio Jair Bolsonaro — até o momento em que deixaram de ser úteis. O bolsonarismo não recompensa mérito, fidelidade ou coerência; ele recompensa utilidade momentânea. No instante em que a presença de alguém se torna um problema de imagem, um ruído estratégico ou uma ameaça à centralidade do líder, essa pessoa é imediatamente convertida em inimiga. Joice e Zambelli não caíram por trair Bolsonaro — caíram por serem descartáveis num sistema que exige sempre um novo culpado para que o líder permaneça inquestionável.

Esse fenômeno não é apenas político — é quase religioso. O bolsonarismo opera como uma seita, em que a verdade não é negociável, a divergência é heresia e o líder é infalível. Nesse ambiente, não há espaço para autocrítica, revisão ou nuance. As regras mudam de acordo com os interesses do centro de comando, mas a lealdade é cobrada como se fosse dogma. E o mais perverso: mesmo quem cumpre à risca os mandamentos pode ser sacrificado. O culto exige que haja sempre um Judas em cena, e quando não há, ele é fabricado. Nesse ciclo, os aliados que mais brilharam são os que mais ameaçam, pois acumulam projeção própria, voz independente e, em última instância, capital político que pode competir com o do líder. Joice foi cortada por articular no Congresso. Zambelli, por extrapolar nos atos. Nenhuma das duas desafiou Bolsonaro diretamente — mas ambas o ofuscaram em algum momento, e isso, no bolsonarismo, é imperdoável.

O que torna essas histórias ainda mais emblemáticas é o peso extra que carregam por serem mulheres. A misoginia estrutural do bolsonarismo não se manifesta apenas em discursos ou votos no Congresso — ela se evidencia no linchamento moral que recai sobre as figuras femininas que se destacam no campo político. Quando erram, são punidas com mais fúria. Quando acertam demais, são silenciadas. As campanhas de difamação contra Joice e Zambelli foram violentas, pessoais, repletas de ataques sexistas, distorções e agressões simbólicas. A desconstrução de suas imagens não foi apenas política, mas de identidade. A mulher que ousa ocupar espaço, pensar por si e desafiar a lógica do patriarcado bolsonarista se torna ameaça — e, como toda ameaça, precisa ser destruída publicamente para servir de exemplo às demais. Nesse processo, a ruína não é apenas profissional: é moral, emocional, simbólica.

Joice e Zambelli não são inocentes — foram protagonistas de um projeto político que atacou instituições, normalizou a violência política e promoveu o desmonte do debate democrático. Mas também são produto e vítima de uma máquina que se alimenta do fanatismo e do conflito permanente. A queda de ambas deveria servir de alerta a quem ainda acredita que há espaço para racionalidade ou moderação dentro do bolsonarismo. Não há. A estrutura exige submissão total, e mesmo assim, não garante proteção. Quando a política é substituída por culto, e o debate por guerra, a lógica deixa de ser estratégica e passa a ser sacrificial. E num ambiente onde todos são descartáveis, o fim não é a vitória — é o colapso. Para o bolsonarismo, a lealdade é só mais um combustível. A ruína é inevitável, e muitas vezes, anunciada.



Fonte: ICL Notícias

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