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Mujica se foi. Mas deixou muito

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Por Leandro Demori

Era uma manhã úmida em Montevidéu quando o portão da prisão se abriu rangendo o ferro cansado de manter gente atrás das grades. Um homem magro, de olhos fundos e barba rala saiu com seus passos curtos que se tornariam conhecidos no mundo todo. Ele ainda não sabia disso. Mal podia acreditar que estava livre – levava nos ombros a sombra de doze anos de cárcere. José “Pepe” Mujica deixava para trás não só os muros da prisão, mas os buracos cavados no chão pelos algozes da ditadura militar. Era neles que passara dias inteiros, incomunicável, como parte da tortura psicológica aplicada pelos militares uruguaios. Eles o chamavam de “Refém”. Se a guerrilha tupamara voltasse à ativa, matariam Mujica e outros como ele.

Mas ele saiu vivo. E saiu homem inteiro.

Pepe Mujica não era político. Era planta do mato, com raiz funda em terra difícil. Camponês antes de tudo. Entrou na luta armada nos anos 60, quando a democracia uruguaia começou a desmoronar. Para manter a chama acesa e derrotar os militares golpistas, os Tupamaros assaltavam bancos, sequestravam diplomatas, e também distribuíam comida e ideologia por toda parte. Mujica foi preso, torturado, alvejado por seis tiros. Sobreviveu. Não virou mártir, sempre relegou a ideia torta de virar mito. Aceitou virar símbolo sob o contrato de que estava apenas puxando a fila da multidão.

Quando a ditadura caiu, Mujica não foi para Miami nem se escondeu atrás de uma mesa de escritório. Fundou um partido — o Movimento de Participação Popular — e entrou para a Frente Ampla. Deputado, depois senador. Falava pouco. Quando falava, todo mundo escutava. Em 2009, o improvável aconteceu: Pepe Mujica foi eleito presidente do Uruguai. O ex-guerrilheiro virou chefe de Estado.

Continuou morando em seu sítio nos arredores da capital. Sem palácio, sem pompa, doava 90% do salário – não por marketing, mas porque achava que já tinha o suficiente. Saía para o trabalho em seu inesquecível Fusca azul. No campo, cultivava flores, como fazia sua mãe nas mais longínquas lembranças de infância. No palácio cultivava ideias: legalizou o aborto, o casamento igualitário, a maconha. Defendia o consumo consciente – preocupado que estava com as questões climáticas –, a política como instrumento de paz e a humildade como virtude política. Falava ao mundo, mas nunca deixou de olhar pro chão — onde crescem as coisas que importam, das flores às ideias. Não foi Pepe que escolheu o mundo, foi o mundo que carregou Pepe nos braços.

Nos últimos anos, Pepe foi parando devagarito. Abandonou o Senado em 2020. Disse que a velhice o pegou. Disse que o amor ainda era seu motor. Nunca reclamou da morte. Sabia que ela vinha, como tudo vem — “como uma visita que não manda recado”. Continuou colhendo flores, conversando com jovens que apareciam nos portões de sua chácara e o viam como um avô gentil com alma de revolucionário.

Quando descobriu que o câncer não daria chance, declarou com franqueza e serenidade: “Sou um velho que está muito perto de empreender a retirada de onde não se volta. Mas eu sou feliz porque, quando meus braços se forem, haverá milhares de braços me substituindo na luta.” Pouco depois, emendou: “Estou morrendo. Deixem-me tranquilo. Meu ciclo acabou. O guerreiro tem direito ao seu descanso.”

Em uma de suas últimas entrevista, concedida ao jornal El Pais, deixou cair uma reposta que poderia ser o epitáfio de milhões de pessoas pelo mundo:

“A morte faz da vida uma aventura. O único milagre que existe no mundo para cada um de nós é ter nascido. (…) Me dediquei a mudar o mundo e não mudei porcaria nenhuma, mas estive entretido. E gerei muitos amigos e muitos aliados nessa loucura de tentar mudar o mundo para melhorá-lo. E dei um sentido à minha vida. Vou morrer feliz, não por morrer, mas por deixar uma turma que me supera com folga. Só isso.”
Mujica se foi, sem estardalhaço, como viveu.

Hasta siempre, Pepe.

(Da Newsletter A Grande Guerra)

 



Fonte: ICL Notícias

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