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Milei, J.K. Rowlling, Jeff Bezos e um futuro de privilégios

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“Eu chamo os últimos 250 anos, de ‘a era em que a vida não é um saco’. E chamaria a nova maneira de adquirir riqueza de J.K. Rowling. Isso significa que você cria algo bom e bonito, outras pessoas apreciam isso e lhe dão algo em troca. Assim, você não briga por migalhas, mas cria duas vezes quando produz riqueza de forma criativa”, definiu o palestrante, no início de sua fala.

E seguiu: “Se você for ver para quem construímos estátuas, pensará que as pessoas com as quais temos a maior dívida são reis, guerreiros, generais e políticos. Mas na maioria dos casos, o progresso veio apesar dessas pessoas. Outros dirão que devemos esse progresso aos cientistas. Como se fossem os maiores heróis da humanidade. Pense nisso: Houve pessoas inteligentes e bons cientistas em toda a história da humanidade. Mas a maior parte de seu conhecimento morreu com eles”.

Para então concluir: “Seu conhecimento não se traduziu em bilhões de pessoas tendo uma vida melhor. Portanto, hoje eu diria que há outro grupo ao qual devemos um grande agradecimento pelos dias que estamos vivendo. E ninguém se dá ao trabalho de mencionar esse grupo quando vamos nomear os benfeitores da humanidade. Na verdade, é um grupo que a maioria das pessoas adora odiar. É um grupo que tem sido vilipendiado desde as séries da Netflix até os filmes de Hollywood. Estou falando dos capitalistas”.

Dr. Nikos Sotirakopoulos – que “leciona sobre Marx, o movimento comunista e a Nova Esquerda” no The Ayn Rand Institute (organização cujos valores são  o individualismo e o capitalismo laissez-faire) – caminhava pelo palco com desenvoltura. Sua palestra tinha pausas para aplausos. Piadas. Momentos emocionantes. O tom inflamado de quem acredita que falando com confiança, se vende qualquer verdade.

Seu propósito naquela tarde de domingo em Praga, na Chéquia, era explicar como a nossa vida é boa por causa do capitalismo e dos capitalistas. Ali ele celebrou Jeff Bezos, os techbros, Steve Jobs. Se irou lembrando de uma vez que os gênios da Apple pediram perdão à mãe Terra pelas pegadas de carbono. “Já imaginou? Essas pessoas maravilhosas que tornaram o mundo um lugar melhor com suas criações tendo que se envergonhar publicamente?”

Se defendeu também de esquerdistas imaginários e respondeu a possíveis questionamentos usando uma linha de raciocínio tão desconectada da realidade que eu revirava os rostos jovens da platéia à procura de algum sinal de indignação ou ao menos dúvida. Mas encontrei apenas olhinhos vidrados, cabeças que balançavam em concordância e aplausos após frases de efeito.

O maior evento “pró-liberdade” da Europa

Fui a Praga curiosa para entender porque o movimento Libertário ou Libertariano e um de seus braços mais radicais, o anarcocapitalismo, tem atraído cada vez mais jovens e adolescentes. Entre 25 e 27 de abril, mais de 700 pessoas vindas de mais de 50 países se reuniram no histórico prédio Gabriel Lóci para ouvir sobre livre mercado, privatização como uma saída para a prosperidade, cripto, bitcoin, o anarcocapitalismo como caminho para liberdade, como os acordos para lidar com a emergência climática estão atrapalhando o progresso e como a Argentina está vencendo sob o governo de Javier Milei.

Desta vez não precisei de esforço para me infiltrar. Ao contrário dos Congressos de extrema-direita que costumo acompanhar, a LibertyCon Europe, que acontece uma vez por ano, era aberta ao público e com ingressos acessíveis a 20 euros (cerca de 129 reais) para os três dias, com direito a almoço. O público alvo eram estudantes.

O evento já teve uma edição no Brasil, em dezembro de 2024 mas não havia palestrante brasileiro em Praga.

Entre os patrocinadores havia muitos institutos liberais e até uma Aliança Mundial de Vapers (Vaper´s World Alliance).

As falas que mais me chamaram a atenção nos três dias de evento, para além da que cito no começo da coluna, foram: uma sobre anarcocapitalismo que lotou a sala, com jovens se espremendo pelos cantos – o que surpreendeu o próprio palestrante, uma celebridade anarcocapitalista local – que basicamente falou sobre desobedecer todas as leis, não pagar impostos, não ligar pro coletivo mas pra si mesmo.

Uma mesa sobre políticas de proibicionismo que achei que falaria sobre a guerra às drogas mas na verdade falou contra as altas taxas sobre tabaco e álcool e defendeu o uso de vapers para diminuir o tabagismo (ignorando todas as pesquisas científicas que apontam seus malefícios).

E uma palestra sobre as “maravilhas” que Javier Milei está fazendo na Argentina, que também lotou e teve que mudar de sala para uma duas vezes maior. “A metáfora da motosserra vem porque precisamos cortar coisas, porque o país está morrendo e a pobreza está crescendo. A Argentina precisava de uma terapia de choque” diria o palestrante CEO de uma rede global de mais de 45 think tanks e ONGs.

O que quer o libertarianismo?

Não é fácil entender de cara o que quer esse movimento. Há diferentes correntes e diferentes estilos, mas na base, todos querem se afastar do Estado, acreditam que o Capitalismo ainda não foi implementado em sua maior potência (que seria o capitalismo puro, livre mercado sem regulações ou taxações etc), o individualismo, são contra políticas públicas sociais e climáticas, são a favor de que se privatize tudo e defendem que a caridade ou cuidado com os pobres tem que vir da sociedade de forma espontânea e voluntária. Alguns falam inclusive em “escravidão voluntária”. Alguns se aproximam de ideias supremacistas brancas (apesar de alguns criadores do pensamento libertário terem sido judeus) e de grupos incel.

“Uma das forças basilares deles é a lógica anticomunista. Eles ainda nutrem nisso, é um grande poderio fantasmagórico. E eles tentam se jogar pra fora da esquerda e da direita como se não fizessem parte do jogo político. Mas ao mesmo tempo diminuem a radicalidade ética em prol de uma participação política maior. E essa radicalização se aproxima do conservadorismo. Inclusive nas pautas culturais, nas pautas morais. Porque e isso tem um poder de mobilização muito grande. E a justificativa para as contradições vai por um campo doutrinário ideológico em que colocam a anedota troiana – a gente vai entrar no estado para destruir ele por dentro” explica Bruna Silva, doutoranda em História pela UFJF, associada ao LAHPS e pesquisadora com foco em Direitas, Movimento Libertariano, Tempo Presente e História Digital.

Bruna caracteriza os libertarianos a partir de três pontos: O tamanho do Estado que eles querem, a questão ética e como chegar nesse tamanho do Estado. “Então, por exemplo, se falam em zero Estado, vão ser anarcocapitalistas. Libertários podem aceitar um Estado mínimo. Eles podem ser minarquistas também, que significa aceitar esse estado pequeno. Como chegar lá? Vão ter, por exemplo, os brutalistas, como o Paulo Kogos (um dos representantes mais famosos desse movimento no Brasil que já se apresentou como sósia do presidente argentino Javier Milei e ficou conhecido por se opor às vacinas da covid-19 durante a pandemia, hoje assessor da presidência da Câmara Municipal de São Paulo) em algum momento se autodenominou, que acreditam que deveriam tomar o Estado pelo poder das armas. Tem os gradualistas, que querem se infiltrar a partir da cultura e da educação. E a questão ética, que os paliolibertários, que vão discutir, por exemplo”.

Paliolibertários, para além da doutrina econômica ultraliberal e hiper individualista, concordam com a direita norte-americana nas pautas de costumes. Segundo Bruna, eles defendem que se aproximando dessas pautas morais, podem atrair o interesse da classe média e de homens brancos, sobretudo nos Estados Unidos. Assim também se manteriam longe da “escória” que seriam os “drogados e libertinos”.

Ainda de acordo com a pesquisadora, o movimento se fortaleceu no Brasil por volta de 2004, sobretudo no Orkut, e foi ganhando adeptos desde então, além de institutos próprios e até uma faculdade (que não vou mencionar aqui propositalmente). Tem entre seus maiores ídolos nacionais Henry Maksoud, fundador do hotel Maksoud Plaza que foi alguém que circulou entre a “nata libertariana” internacional e, atualmente, Olavo de Carvalho.

“No Brasil eles remetem ao Olavo de Carvalho essa ideia do gramscismo cultural. A gente viveria uma censura de esquerda em todos os lugares, o que nos impediria de chegar ao nosso objetivo e Olavo abriu nossos olhos pra isso. O Olavo muitas vezes falou mal dos libertários e dos anarcocapitalistas. Ele falava que eles eram burros e todo mundo odiava ele. Mas quando morreu, teve uma grande campanha de homenagem dizendo que ele falava muita coisa ruim, mas que foi ele que abriu nossos olhos para o poder da esquerda”.

Na lógica do Cavalo de Tróia ou não, fato é que alguns libertarianos hoje integram a política brasileira. A maioria está no partido Novo e outros tantos aproximam do bolsonarismo, explica Bruna. No Brasil, também se unem aos movimentos separatistas, sobretudo no Sul do país.

Mas o que estaria atraindo a juventude para esse movimento? Bruna acredita que alguns dos motivos seriam a possibilidade de mudança, já que eles acreditam que o capitalismo em sua maior potência ainda não aconteceu, o sequestro das ideias de rebeldia, as comunidades nas redes sociais e a possibilidade de vislumbrar um futuro: “Essa questão que eles têm com o tempo é muito interessante, ficam num não lugar. O passado não é necessariamente para onde se quer retomar, mas algumas coisas são usadas como referência. O presente para alguns está ruim, e o futuro de fato está por vir. Eles conseguem vislumbrar esse futuro sem nenhum peso, porque pra eles o capitalismo nunca foi efetivado. Se chegar no sistema que eles querem, a gente vai estar destruindo o basilar da cidadania, da humanidade e dignidade”.

E conclui: “Curioso que esses jovens que querem voltar ao passado, à monarquia, por exemplo, nunca pensam que serão explorados, acham que serão no mínimo primos do rei. Já o anarcocapitalista acha que nesse futuro vai ser dono do condado Disney, não vai se submeter a escravidão voluntária. Esse deslocamento é realmente interessante”.



Fonte: ICL Notícias

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