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Por Luis Eduardo Tavares
Em um dia marcado por falas cruzadas entre o sagrado, o poético e o ecológico, a FLIMA se firmou como um território de escuta radical. O que se viu e se sentiu nas mesas do dia 16 de maio foi a constatação de que o Brasil precisa ser reimaginado não apenas com razão, mas com corpo, mito e chão.
A Jurema como ciência, território e feitiço: o que a Flima revelou
A mesa “Ciência encantada: nos caminhos de Jurema”, reuniu o jornalista e escritor Marcelo Leite, a liderança indígena Chirley Pankará e a educadora Carolina Rocha, mais conhecida como Dandara Suburbana, que fez a mediação com intensidade afetiva e precisão crítica.
Mais do que lançar o novo livro de Marcelo Leite — A ciência encantada de Jurema, da Editora Fósforo —, a mesa se propôs a escancarar o que a ciência ocidental muitas vezes não quer ver: que as tecnologias de cura dos povos indígenas e afro-brasileiros são tão complexas e rigorosas quanto qualquer protocolo de laboratório. A Jurema, planta nativa da caatinga e usada há séculos em rituais do Catimbó e da Jurema Sagrada, foi apresentada para além de um objeto de pesquisa, mas como agente ativo de resistência anticolonial, espiritualidade e saber.
Chirley Pankará iniciou sua fala com um toante tradicional, evocando os encantados, e logo estabeleceu o tom da conversa: o conhecimento ancestral não precisa da validação da ciência para existir, mas a ciência precisa reencontrar a humildade de escutar. Emocionada, contou sobre a perseguição histórica ao uso da Jurema por povos indígenas, e a relação entre sua invisibilização e os mecanismos coloniais de apagamento cultural. Segundo ela, por muito tempo, tomar Jurema era coisa do mal, era crime, vergonha e hoje é resistência, que me cura dores físicas e espirituais.
Marcelo Leite, que chegou ao tema da Jurema pela via do jornalismo científico e da neurociência, relatou sua trajetória de transição: de um cético racionalista a um cronista afetado por encontros com lideranças espirituais, pajés, e comunidades que usam a planta em rituais de cura. Sua fala foi atravessada por uma autocrítica delicada: ele contou que percebeu que o jornalismo, como a ciência, carrega o risco de capturar sem escutar. E que seu livro só fazia sentido se contasse também as histórias dos corpos que vivem a Jurema.
A conversa avançou para o tema da apropriação cultural. Como garantir que o recente interesse da medicina psicodélica pela Jurema — e sua substância DMT — não repita os erros do passado, como os sofridos pela curandeira Maria Sabina, apagada e explorada após ter seu conhecimento levado ao Ocidente? Chirley foi firme: “O problema não é usar o que é nosso. O problema é usar sem saber de onde veio, sem respeitar quem trouxe e sem cuidar de quem ainda guarda esse saber.”
A Jurema, disseram os convidados, é também uma escola política. Envolve rituais, modos de colher, ritmos da lua, descanso da raiz, cânticos e dieta. É anticapitalista por natureza: não aceita pressa, demanda paciência, escuta, tempo e relação. Carolina Rocha sintetizou: “A Jurema não é um manual de uso. É uma cosmopercepção. Não serve a quem só busca o efeito. Serve a quem busca pertencimento.”
Ao final, a mesa deixou a impressão de que não se trata apenas de legalizar plantas ou pesquisar princípios ativos. Trata-se de devolver voz e dignidade a quem sempre cuidou, mesmo sendo silenciado. Entre ciência, espiritualidade, sensorialidade e política, o que a Jurema ensinou na FLIMA foi simples e profundo: cuidar do corpo é também cuidar do território.
Poéticas de deslocamento: imaginar é também resistir
A mesa que reuniu Edimilson de Almeida Pereira, Kaká Werá e mediação de Cristiane Tavares (curadora da FLIMA) tratou de deslocamentos físicos, espirituais, históricos e poéticos, não como rupturas, mas como formas de reinvenção do pertencimento.
A provocação de partida foi clara: pode a literatura ultrapassar fronteiras geográficas e culturais, forjando a ampliação de imaginários? E, mais do que isso: quais imaginários estamos autorizando a sobreviver, e quais estamos deixando desaparecer?

(Foto: Luis Eduardo Tavares)
Edimilson, poeta e professor de estudos literários da Universidade Federal de Juiz de Fora, trouxe uma definição preciosa do que está em jogo quando falamos em literatura como ferramenta de deslocamento simbólico: a palavra, segundo ele, é sempre incompleta. Toda palavra dita carrega o silêncio do que não foi dito. E isso não é fraqueza, é potência. É a partir da incompletude que se abre o espaço da escuta, do diálogo e do sonho.
Kaká Werá, liderança indígena e escritor, complementou trazendo o conceito de “imaginal” da tradição tupi-guarani, um plano mais profundo que o imaginário, onde se estruturam não só os sonhos, mas também as visões de mundo e os modos de ser. Segundo ele, a colonização não devastou apenas territórios físicos, mas também esses territórios imaginais: “o que restou, muitas vezes, foi a casca sem alma, o corpo sem canto”.
A mesa se tornou um exercício de escuta generosa. Edimilson leu seu poema “De volta ao Sol”, inspirado no manto tupinambá repatriado da Dinamarca, e refletiu sobre a violência simbólica que retira objetos sagrados de seus contextos vivos para enclausurá-los como fetiche de museu. “O manto quer voar para casa”, disse ele, num verso que ecoa como denúncia e profecia.
Kaká, por sua vez, fez o público dançar. Literalmente. Cantou em tupi-guarani e convidou os presentes a repetir versos e passos que fazem parte de um sistema de transmissão oral de conhecimento. “A dança, o canto, o corpo em movimento, isso é literatura também. Isso é território. Isso é escola”, afirmou. E depois explicou: “não nasci guarani, tornei-me guarani. O tempo e a mãe terra me fizeram guarani”.
Ambos os autores trouxeram experiências em que o “eu” se dissolve no “nós”. Onde a identidade é construída em travessia, e não em fixação. Edimilson lembrou que, em sua obra Caderno de Retorno, o deslocamento entre Pirapora (MG) e Genebra (Suíça) gerou um eu poético híbrido, múltiplo, que carrega as dores da migração, mas também a potência de sonhar em mais de uma língua.
A mesa finalizou com o reconhecimento de que imaginar o Brasil exige não só resgatar o que foi apagado, mas inventar novas formas de relação com o outro, com o tempo e com o chão que se pisa.
Palavras sob risco: os limites da linguagem diante do colapso
Fechando o dia 16 de maio na FLIMA 2025, a mesa “Emergência Climática: os limites da palavra” reuniu duas escritoras que vêm enfrentando a devastação do planeta não só com denúncia, mas com invenção: Ana Rüsche e Prisca Agustoni, com mediação da jornalista e historiadora Paula Carvalho.
A conversa partiu da constatação de que o mundo está acabando e para alguns, já acabou. A pergunta não era mais “se”, mas como nomear esse fim, e como seguir sonhando quando o céu desaba e as montanhas derretem?
Ana lançou dois livros na feira, o romance “Carga Viva” (Rocco) e o ensaio “Quimeras do Agora: ecologia, literatura e imaginação política no antropoceno” (Bandeirola). Já Prisca trouxe o livro de poemas “Quimera”, lançado pela Círculo de Poemas. Ambas abordam, por caminhos distintos, a tensão entre linguagem, natureza e tempo.
(Foto: Luis Eduardo Tavares)
A metáfora da quimera, esse ser mitológico feito da mistura de outros, tornou-se o fio condutor da mesa. Prisca associou-a à ideia de metamorfose: não mais um sujeito fixo diante de um mundo estável, mas seres em mutação, narrando entre escombros, ruínas e brechas. Já Ana citou o teórico Fredric Jameson ao lembrar que nossa imaginação política está limitada pelo real, o que tomamos como impossível ou absurdo diz mais sobre nossa formação do que sobre os fatos.
Ambas propuseram que a literatura precisa expandir a imaginação diante do colapso. E para isso, talvez seja preciso escavar o passado, como fazem os arqueólogos, para lembrar que sonhar sempre foi uma fonte de sobrevivência.
As autoras também desafiaram a velha dicotomia entre cultura e natureza. “Tudo é natureza”, lembrou Ana, mostrando como a extração predatória de granito para banheiros de luxo na Europa, narrada em seu romance “Carga Viva”, ecoa na explosão das montanhas brasileiras. Prisca, por sua vez, leu poemas escritos sobre o derretimento das geleiras dos Alpes, conectando o que parece distante à intimidade do luto ecológico. Em um dos poemas, ela dá voz à própria montanha, que derrete e ruge em silêncio.
Quando perguntadas sobre a poesia diante do fim do mundo, as autoras foram unânimes: a poesia não é solução, mas é abrigo. Um modo de fundar sentido onde já não há mais respostas. “A poesia cria uma densidade do real que a prosa às vezes não alcança”, disse Prisca. “Ela não organiza, ela ilumina. Mesmo que brevemente.”
A mesa encerrou com um sentimento paradoxal: o mundo arde, mas ainda se escreve. Ainda se sonha. Ainda se encontra sentido entre as cinzas. E talvez seja justamente por isso que a literatura ainda importa — não por salvar o planeta, mas por salvar a experiência de habitá-lo com dignidade, até o último verso.
Este segundo dia de FLIMA ofereceu aberturas, mais propriamente que respostas. Jurema, imaginal, quimera, três palavras que atravessaram as falas e condensaram a força simbólica do que estava em jogo. Se o mundo está ruindo, a literatura viva, encantada e insurgente ainda nos oferece brechas de permanência.
Fonte: ICL Notícias