Por Paulo Batistella – Ponte Jornalismo
Gabriel da Silva Nascimento, um jovem negro de 26 anos, diz esperar que Jhonnatan Silva Barbosa, um homem branco de 35, possa contar com o que ele próprio não teve direito: a submissão ao devido processo legal. Gabriel quase foi morto ao ser espancado e asfixiado por Jhonnatan em 18 de dezembro de 2021, em Açailândia, interior do Maranhão, acusado de tentar furtar um carro — do qual o próprio Gabriel era dono e que estava estacionado em frente ao prédio em que ele morava.
O jovem diz aguardar por justiça, já que, segundo avalia, quem se acha cumpridor das leis tem muitas vezes se colocado acima delas para cometer crimes a pretexto de fazer justiça com as próprias mãos — o “justiçamento” do qual foi vítima. Seu agressor será julgado perante um Tribunal do Júri na quarta-feira (2/4).
Jhonnatan Silva Barbosa responde por tentativa de homicídio por motivo torpe, com emprego de asfixia e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima. “Espero que ele seja penalizado na medida da culpa dele, para repensar suas atitudes antes de agir contra alguém em razão da sua cor, das suas vestimentas”, diz Gabriel, à “Ponte”.
“Se existem as leis, é para perseguirmos o ordenamento e o procedimento correto, que foi o que eu fiz. Fiz boletim de ocorrência, segui os tramites legais. Mas a gente fica triste com essa situação porque, se a pessoa não é punida, ela se promove acima do direito, da lei. Ela vai dizer: ‘Posso fazer qualquer coisa que não vou ser penalizada, vou pagar uma cesta básica, ou nem isso’, afirma o jovem. “Em relação à ideia de fazer justiça com as próprias mãos, creio que muitas pessoas levam isso para o coração porque não veem a justiça acontecer pelos tramites legais ou de modo tão rápido.”
Acusação racista
Na manhã em que quase foi morto, Gabriel se preparava para uma curta viagem, na qual participaria de uma confraternização do banco onde trabalhava como recepcionista. Por volta das 6h20 daquele dia, ele desceu à rua com ferramentas em mãos para fazer uma última checagem da refrigeração do carro, um Chevrolet Agile que havia adquirido há dois meses.
Chegaram então à rua Jhonnatan, um empresário local, e a esposa, a dentista Ana Paula Costa Vidal, a bordo de uma BMW, ocasião em que desembarcaram e foram a pé logo em direção ao jovem negro.
Questionado pelo casal sobre o que fazia ali, Gabriel disse que vistoriava o próprio carro para viajar. O agressor contestou a resposta e ordenou que descesse, já o acusando de furto. O dono do veículo negou a acusação por mais de uma vez, mas atendeu ao pedido, saindo com as mãos para cima, com a preocupação de deixar evidente que não oferecia risco algum. Foi então que começaram as agressões por parte de Jhonnatan e também de Ana Paula, sem que a vítima revidasse.
Para Gabriel, ficou evidente a dimensão racista do caso — a mãe da agressora chegou a pedir a ele, diz a vítima, que não atribuísse à filha o crime de racismo. “Eles fizeram uma avaliação por conta própria e um julgamento, foram um juiz naquela hora. Fizeram uma avaliação pelas minhas vestes, pela minha cor”, conta. “Aliás, não foi nem um julgamento, porque em um julgamento você pode se explicar, que foi a primeira coisa que tentei fazer. A chave estava na ignição, eu estava com os documentos do carro.”
O advogado Marlon Reis, que atua como assistente da acusação, reforça isso: “O racismo é justamente o elemento que caracteriza a motivação torpe no caso. Gabriel foi tido como autor de um crime simplesmente por ser negro. Na visão do seu algoz, não seria capaz de ser proprietário do veículo que tentava consertar. Essa leitura da realidade foi marcada por uma visão puramente racista, já que não havia qualquer outro fator que pudesse fazer supor que a vítima estivesse praticando um crime”.

O empresário Jhonnatan e sua mulher, a dentista Ana Paula, agrediram e tentaram asfixiar Gabriel mesmo após a vítima afirmar que era dona do veículo e negar a acusação de furto | Foto: Reprodução
Agressões e tentativas de asfixia
Gabriel foi jogado no chão por mais de uma vez e encurralado contra um muro. Ele levou socos, tapas, chutes e pisões. Jhonnatan pisou por três vezes no pescoço da vítima para asfixiá-la e também lhe aplicou um mata-leão na tentativa de matá-la, segundo descreve a denúncia oferecida pelo Ministério Públicou do Maranhão (MP-MA).
A mulher de Jhonnatan, Ana Paula, também pressionou o pescoço do jovem negro com as mãos e atiçava o marido: “Não deixa ele escapar.” As agressões só cessaram após um vizinho, Marcos Wessley Vieira de Oliveira, correr ao local e interceder pelo homem agredido, repetindo por várias vezes que ele era morador de um prédio naquela rua e dono do Chevrolet Agile.
À Justiça, Jhonnatan e Ana Paula negaram os crimes imputados a si e alegaram que tentaram conter Gabriel enquanto buscavam a polícia. Uma câmera de segurança registrou, no entanto, toda a dinâmica das agressões. Além disso, o caso chegou à Polícia Civil apenas por iniciativa da vítima, que foi quem registrou um boletim de ocorrência — ele só conseguiu fazer isso e também realizar o exame de corpo de delito no dia seguinte ao ocorrido, já que, no sábado em que houve a tentativa de assassinato, uma “falha no sistema” da delegacia impedia o registro, segundo afirmaram os policiais.
Sem prisão em flagrante
Os agressores não foram presos em flagrante. Jhonnatan responde até hoje em liberdade. Já Ana Paula, que a princípio poderia ser levada a júri também por tentativa de homicídio, teve sua conduta desclassificada pela juíza Selecina Henrique Locatelli, com anuência do MP-MA: ou seja, a Justiça deixou de ver a eventual ocorrência de crime contra a vida, o que colocaria a ré diante de um Tribunal do Júri, e a agressora responde agora apenas por lesão corporal.
Para Gabriel ficaram as marcas da violência que ainda machuca. “Eu não tenho condições de conferir o meu carro, por exemplo, no mesmo horário e no meio da rua. Ficou um trauma. Você está no seu direito de sair e olhar o seu carro, mas fica com medo pelo que passou. Graças a Deus, tive muito apoio da minha família, que não me deixou levar isso para uma linha pior”, diz ele.
A vítima diz confiar que haja justiça no caso, como uma forma de combater essa ideia de “justiçamento” — a suposta justiça com as próprias mãos que ignora direitos como o de ampla defesa e contraditório, dos quais Jhonnatan usufrui hoje. “Fiz todo o procedimento legal para haver a prisão do infrator, e não ocorreu isso. A todo momento, ele responde em liberdade, o que é um direito dele, até que se prove [a culpa]. Por isso, as pessoas colocam isso no coração, porque a gente não vê o processo correr como deveria. O caso foi em 2021, e precisamos esperar até 2025 para ter um julgamento”, lamenta Gabriel.
“E ainda se corre o risco de o júri sentenciar a inocência, o que a gente espera que não ocorra, para ele não se promover acima da lei e seguir fazendo isso. Tem que ocorrer a punição correta”, pede. “Eu acredito na justiça, tanto que, desde o início, sigo o processo legal correto. E espero que, no dia do julgamento, essa pessoa seja punida na medida da sua culpa.”
Agressor já tinha condenação
Jhonnatan já havia sido condenado por um outro caso em 2019, por ter matado uma pessoa ao atropelá-la em 2013. Na ocasião, ele dirigia mesmo sem ter carteira de habilitação, após voltar de um aniversário. Ele não prestou socorro à vítima, sob a alegação de ter tido medo de sofrer retaliações de pessoas que se aglomeravam no local do acidente. Testemunhas relataram, no entanto, que poucos moradores se aproximaram do local, sem que ninguém estivesse com os ânimos exaltados.
A sentença no caso impunha uma multa e uma pena restritiva de direitos na modalidade prestação pecuniária, uma alternativa à prisão. O caso transitou em julgado em 2023.
A “Ponte” fez contato com um advogado que atuou na defesa de Jhonnatan e de Ana Paula no caso envolvendo Gabriel, para obter um posicionamento de ambos. Ainda não houve manifestação deles. Se houver, a reportagem será atualizada.
Fonte: ICL Notícias