Indígenas não podem assumir sozinhos a responsabilidade de salvar o planeta

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Decidi não participar da COP28 em Dubai, que encerrou em 13 de dezembro, em parte devido à desilusão que sofri na última COP no Egito, em 2022. Nessa ocasião, testemunhei repetidas formas de negação climática — promessas feitas sem possibilidade de serem cumpridas, soluções provisórias e fantasias tecno-salvacionistas que não conseguem aceitar a possibilidade de que as instituições supremacistas brancas e as várias formas de imperialismo são insustentáveis e se encontram num estado de declínio terminal.

 

A cúpula não leva em consideração os modos de vida daqueles que vivem e coexistem com a natureza, e têm feito isso desde antes da aurora da “civilização”, apesar das depredações históricas e contínuas do colonialismo de ocupação e do necrocapitalismo.

Algo semelhante aconteceu em Davos, a réplica econômica da Conferência da ONU, a “COP sem uma suposta preocupação com pretensões ambientalistas”.

Os dois eventos são faces opostas da mesma moeda. A grata exceção no fórum suíço foi a sensatez de Gustavo Petro, presidente da Colômbia — principal voz a apontar que o capitalismo e seu modelo de infraestrutura que olha para o meio ambiente apenas como commodity não poderá superar a crise que ajudou a causar.

Isso me faz sentir que tais conferências são meramente performativas, uma cortina de fumaça para ocultar a verdadeira conjuntura do nosso planeta. Em vez de ouvir essas apresentações, decidi passar meu tempo na Floresta Amazônica, retornando apenas agora, no início do novo ano.

Desde que a Covid-19 irrompeu em nossas vidas, tenho passado grande parte do meu tempo como documentarista no Brasil, Peru, Colômbia e Equador. Como tal, fui forçado a lidar com questões inquietantes sobre o nosso futuro. Isso levou-me a reconhecer uma dura realidade: os povos indígenas não podem assumir a responsabilidade exclusiva de salvar o nosso planeta.

Nos últimos anos, as discussões centradas nas perspectivas indígenas sobre o meio ambiente têm adquirido uma nova dinâmica, iluminando a abordagem distinta dos povos nativos em relação à conservação da terra. Ao contemplarmos os desafios enfrentados pelas comunidades indígenas — especialmente no contexto das crises ambientais em curso — é imperativo considerar a sabedoria coletiva contida nas suas diversas culturas como uma ferramenta valiosa para imaginar soluções democráticas e ecologicamente bem-informadas para um futuro justo para os seres humanos e todos os organismos vivos.

É um equívoco comum pensar que os povos indígenas das Américas se consideram “salvadores” do meio ambiente. Isso não é verdade. De fato, a mensagem destes povos é clara — sem esforços coletivos e alianças colaborativas, a humanidade certamente não conseguirá enfrentar os desafios ambientais que enfrentamos como espécie. Embora muitas comunidades indígenas estejam na vanguarda de vários movimentos ambientais, é de suma importância reconhecer a sabedoria social que fundamenta os seus repetidos apelos à unidade e à solidariedade atravessando fronteiras de identidade nacional, étnica, cultural, linguística e humana. Quem está disposto a unir forças com esses povos para pensar, sentir e imaginar o nosso caminho em direção a algo melhor?

Memória e conhecimento dos indígenas

Um aspecto significativo do pensamento indígena destaca a importância da memória e do conhecimento ancestral. “O futuro é ancestral. Ele é tudo o que já existiu. Ele não é o que tá lá em algum lugar. Ele é o que está aqui”, diz o líder indígena, filósofo, escritor e novo membro da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. As comunidades indígenas enfatizam a necessidade de preservar e incorporar as suas tradições culturais. Essas tradições não são de forma alguma estáticas: elas evoluem constantemente em resposta às pressões da história e das experiências vividas. Para os povos indígenas, o futuro está profundamente enraizado no passado. Essa visão de mundo cria paisagens temporais únicas, complexas e altamente imaginativas que abalam as noções lineares de progresso.

Refletindo sobre os resultados da COP28, lembrei de um importante painel de discussão organizado durante a COP26, habilmente moderado pelo colunista do The New York Times, Thomas Friedman. Os notáveis participantes desse painel — incluindo o Dr. Akinwumi Adesina, presidente do Banco Africano de Desenvolvimento, Julia Gillard, ex-primeira-ministra australiana e presidente do Wellcome Trust, e Mari Elka Pangestu, Diretora-Geral de Políticas de Desenvolvimento e Parcerias do Banco Mundial — centraram suas deliberações no vislumbramento, planejamento, e execução de estratégias que infundam equidade e resiliência na infraestrutura do amanhã. Ao refletir sobre o painel de discussão, não pude deixar de me perguntar: que mudanças tangíveis ocorreram desde então?

As palavras do Dr. Adesina continuam a ressoar na minha mente: “As perdas para a África são imensas. Atualmente, perdemos entre sete e 15 bilhões de dólares por ano devido às mudanças climáticas. Se isso não mudar em termos de conseguirmos nos adaptar, esse valor aumentará para cerca de 50 bilhões de dólares até 2040”. Falando sobre a necessidade vital de investimentos em infraestrutura, ele acrescentou: “O que nos permite caminhar é a presença da coluna vertebral. Infraestrutura é isso. Se você tiver uma boa infraestrutura, sua economia funciona. Se tivermos uma melhor infraestrutura que é verde, melhor ainda. Precisamos investir muito mais em infraestrutura.”

Será que é isso mesmo?

Para mim, esse painel de discussão levanta uma questão fundamental: por que é que não consideramos o próprio meio ambiente como parte da nossa infraestrutura? As vozes indígenas questionam o paradigma prevalecente que vê os recursos naturais apenas como commodities a serem exploradas. Essa perspectiva nos desafia a repensar os próprios alicerces das nossas estruturas sociais e a defender a proteção da infraestrutura natural.

Embora documentários e debates acadêmicos possam desempenhar um papel crucial para uma maior conscientização em relação a mudanças climáticas, o verdadeiro desafio reside na implementação de soluções tangíveis. O pensamento indígena proporciona outros possíveis para a proteção ambiental que nos ajuda a enxergar além da alçada limitada do capitalismo. Esse pensamento pede que reconheçamos a interligação de todos os seres vivos e assumamos a responsabilidade coletiva de salvaguardar o nosso planeta.

Em nossa busca por soluções, temos que reconhecer que as comunidades indígenas não podem assumir essa responsabilidade sozinhas. O apelo dessas comunidades para uma ação coletiva e compreensão mútua é um convite para forjar alianças e trabalhar rumo a um futuro compartilhado em comum. Temos que ir além da retórica do ambientalismo e envolver-nos ativamente com os sistemas de conhecimentos que têm sustentado uma diversidade de ecossistemas durante milênios.

Na minha recente visita ao Equador, consegui compreender melhor três cosmologias notáveis enraizadas nas diversas filosofias indígenas do país: Sumak Kawsay, Kawsak Sacha e Tarimiat Pujustin. Todos as três procuram de forma despretensiosa iluminar relações complexas e dinâmicas de interdependência entre a humanidade e a natureza (frequentemente tragicamente obscurecida pela ciência ocidental, bem como pelas formas de antropocentrismo cultural que moldam as suas pretensões de objetividade).

Sumak Kawsay, popularmente traduzido como “Bem Viver”, emerge dos Andes, proclamando uma vida em equilíbrio e harmonia entre as pessoas e a natureza. Na vasta Floresta Amazônica, Kawsak Sacha, ou “Selva Viva”, celebra a conexão espiritual entre a natureza, os seres humanos e o cosmos. Por último, do mundo Shuar, Tarimiat Pujustin, reflete uma boa vida no seu próprio território e o cuidado com a natureza, sugerindo um olhar íntimo das relações indígenas com a terra e o mundo mais-que-humano. Esses conceitos convergem num apelo ao reconhecimento da interdependência de todas as formas de vida e à adoção de uma abordagem coletiva para salvaguardar o nosso planeta.

À medida que lidamos com questões ambientais complexas, a integração das perspectivas indígenas no discurso dominante não é apenas um passo em direção à justiça, mas um caminho prático a seguir. Chegou a hora de irmos além do mero reconhecimento e envolver ativamente as comunidades indígenas na elaboração de políticas e estratégias ambientais. Fazendo isso, poderemos lutar coletivamente por um futuro em que a proteção ambiental não é uma escolha, mas sim uma responsabilidade compartilhada por todos.

Clique aqui para acessar a versão em inglês 🇬🇧.

 

Marcos Colón, Florida State University

Marcos Colón, Florida State University

É doutor em estudos culturais pela University of Wisconsin-Madison e atualmente leciona na Florida State University. É filho de mãe brasileira e pai norte-americano. Produziu e dirigiu o longa documental Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry Ford’s Adventure in the Amazon (2018). Pisar Suavemente na Terra (2022) é seu segundo longa.

 

Dr. Marcos Colón é professor do Programa de Assuntos Internacionais da Florida State University. Escreveu, produziu e dirigiu “Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry Ford’s Adventure in the Amazon” (2018) e “Stepping Softly on the Earth” (2022). Seu próximo livro, “The Amazon in Times of War”, está previsto para ser lançado no verão de 2024.

 

Produção: Marcos Colón
Tradução: Eduardo Rodrigues
Revisão: Isabella Galante
Montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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