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Por Luis Eduardo Tavares
No dia 17 de maio, a FLIMA transformou Santo Antônio do Pinhal em um centro de escuta e atravessamento. Entre histórias de exílio, fronteiras invisíveis e cidades em ruínas, o festival deu voz a escritores e artistas que escrevem a partir das bordas, sejam elas geográficas, sociais ou simbólicas. Das mesas, o que emergiu foi a certeza de que a literatura continua sendo um dos modos mais potentes de compreender os deslocamentos do presente e imaginar outros futuros possíveis.
Entre muros, fronteiras e humanidade
A mesa “Deslocamentos forçados: migração e refugiados”, realizada na tarde do dia 17 de maio na FLIMA 2025, trouxe ao palco o jornalista Jamil Chade, a artivista e educadora Marie Ange Bordas e a historiadora e jornalista Paula Carvalho como mediadora. Foi uma das conversas mais densas e atravessadas de emoção do festival devido aos testemunhos narrados pelos convidados.
Logo no início, Marie exibiu um vídeo com o poema “Gaza” do escritor palestino Mahmoud Darwich. Um gesto simbólico potente que se conectava à urgência de um dos maiores deslocamentos forçados do presente. O massacre sistemático do povo palestino foi tratado ali como espelho de um modelo global de desumanização, exclusão e controle.
Marie, que há mais de uma década desenvolve projetos de arte e educação em campos de refugiados, narrou sua trajetória que se coloca como missão facilitar trocas sensíveis entre pessoas e mundos que normalmente não se encontram. A partir de sua experiência com crianças e jovens refugiados em Kakuma (Quênia), África do Sul e Europa, ela destacou que “não basta mostrar sofrimento, é preciso construir escuta e memória compartilhada.” Em suas palavras, a arte não serve para representar, mas para fazer sentir, pensar e transformar.
Jamil, por sua vez, trouxe relatos de sua cobertura em mais de 70 países, sempre com foco em direitos humanos, guerras e migrações. Comovido, contou episódios vividos com seu filho após a eleição de Donald Trump, incluindo uma agressão simbólica em forma de frase: “Tomara que você seja deportado”. Essa frase, dita por uma criança a outra em um pátio de escola, foi o ponto de partida para refletir sobre o muro como construção psíquica e social. “Muros não se constroem para impedir a entrada. Eles existem para alimentar o medo do diferente”, disse.
O tom da mesa oscilava entre denúncia e poesia, colapso e esperança. Paula Carvalho, com precisão crítica, costurava as falas com perguntas sobre o papel da arte, da imprensa e da educação diante da naturalização do horror. “Não basta resistir, é preciso insistir”, falou Marie em determinado momento, recuperando o termo árabe sumud, que significa resistir coletivamente, conceito central à luta palestina.
Ao final, Jamil leu uma carta às crianças de Gaza, um texto inédito que estará em seu próximo livro. Em meio a aplausos e lágrimas, ficou a sensação de que as palavras, quando ditas com coragem e escuta, ainda têm o poder de atravessar os muros que se erguem entre nós. A literatura, o jornalismo e a arte, ali reunidos, mostraram que deslocamento não é apenas ausência de casa, é também um caminho ético, uma escolha de lado.
O país que se escreve pelas bordas
A mesa “Brasil deslocado: literatura e fronteira”, reuniu dois autores que constroem suas obras a partir dos extremos geográficos e simbólicos do Brasil: o paraense Edyr Augusto e a gaúcha Morgana Kretzmann, com mediação da jornalista e escritora Jéssica Balbino. Com trajetórias marcadas por uma literatura ancorada em territórios marginalizados e realidades silenciadas, os dois mostraram que escrever é um ato de escuta radical e invenção de sobrevivência.
Edyr, conhecido por sua linguagem direta, ágil e contundente, descreveu sua Belém natal como uma selva de concreto fincada na maior floresta tropical do planeta, atravessada por pobreza, corrupção, tráfico e resistência. Seus livros, como Psica — que em breve será adaptado para uma série na Netflix —, são marcados por personagens reais demais para caber no noticiário, mas invisíveis demais para ocuparem o centro da cultura. “Eu escrevo sobre o que eu vejo. Sem pena. Sem maquiagem”, afirmou.
Morgana, por sua vez, falou da fronteira entre o Brasil e a Argentina, onde ambienta sua obra Água Turva. A região, profundamente empobrecida, mistura descaminho, tráfico de armas, floresta ameaçada e laços comunitários resilientes. Sua fala foi marcada por um testemunho potente sobre a violência política e o machismo institucional que enfrentou quando, ainda jovem, trabalhou para um deputado estadual no Rio Grande do Sul, experiência que inspirou parte da personagem Olga em seu romance. “Minha literatura não é de vingança, é de reparação”, disse. “Por mim mesma, pelas mulheres que conheci, e pelas que ainda vivem caladas.”

(Foto: Luis Eduardo Tavares)
A mesa revelou dois modos distintos de lidar com a violência como matéria narrativa. Para Edyr, a violência é parte do cenário e também motor de linguagem. Escreve com frases curtas, ritmo pulsante e cenas de impacto para capturar o leitor e jogá-lo no centro da trama. “Eu quero que ele não consiga parar de ler. Que se sinta dentro da história, como cúmplice da cena.” Já Morgana constrói suas histórias com camadas de sensibilidade e tensão. Sua escrita parte da escuta corporal: “Eu observo como as pessoas andam, comem, falam. E a partir daí eu construo quem elas são”.
Ambos destacaram que os seus livros são lidos fora do eixo Rio–São Paulo muitas vezes com estranhamento, confundidos com realismo mágico, thrillers ou literatura policial. Mas o que propõem é um realismo radical, social e afetivo, onde o que se conta é a experiência concreta da sobrevivência em lugares que o Brasil finge não ver.
A literatura de Milton Hatoum
O dia 17 encerrou com o autor homenageado desta edição. Intitulada “Manaus é um mundo: a poética de Milton Hatoum”, a conversa entre o autor e o curador Roberto Guimarães foi muito mais do que um tributo: foi uma aula aberta sobre literatura, política, memória, estética e pertencimento.
Hatoum revisitou sua trajetória pessoal e literária falando de Manaus, sua cidade natal, hoje transformada pelo avanço desordenado do capital sobre a floresta. “A Manaus da minha infância não existe mais”, disse, ecoando a frase do poeta Thiago de Mello, que dizia não reconhecer mais a cidade. Sem nostalgia idealizada, o autor traçou o arco do colapso ambiental amazônico desde os anos 1960, quando o desmatamento era quase zero, até o presente, em que a floresta cede cada vez mais espaço à especulação e à destruição.
Ao longo da conversa, Hatoum costurou episódios de sua juventude em Manaus e Brasília, os anos de formação na USP, as influências literárias e os bastidores de seus romances. A figura da carta, como documento íntimo, artifício narrativo e motor da memória, apareceu como metáfora recorrente em sua obra. A epígrafe retirada de Guimarães Rosa, “Sou de onde nasci, sou de outros lugares”, atravessou a fala de Hatoum, que descreveu seus personagens como seres em deslocamento: de corpos, de afetos, de tempos.
O autor também defendeu com veemência o lugar do romance como espaço das contradições humanas, longe do idealismo e da autoajuda. “Romance é desilusão. O que move a literatura são as fraturas, não a celebração”, afirmou. Com ironia, comentou sua tentativa frustrada de ser poeta e exaltou a dificuldade da linguagem poética, “a mais exigente das formas”. Para Hatoum, escrever é exercício de coragem: não há literatura relevante sem encarar os traumas da infância, os silêncios familiares, as estruturas de poder que moldam nossas vidas.
A sensualidade e a musicalidade de sua escrita também foram tema da conversa. Hatoum revelou sua obsessão pelo ritmo e pelo som das frases, influência direta da leitura de autores como Virginia Woolf, Faulkner, Clarice Lispector e, claro, Guimarães Rosa. Mas deixou claro: imitar é desaparecer. “Quem copia o Rosa vira pastiche”, alertou. Em sua opinião, estilo é identidade, é modo de olhar o mundo, não ornamento.
(Foto: Luis Eduardo Tavares)
Outro ponto alto da mesa foi a discussão sobre as traduções de seus livros. Publicado em mais de 17 idiomas e 12 países, Hatoum comentou o paradoxo de ser lido no exterior ao mesmo tempo em que muitos escritores brasileiros seguem desconhecidos além das fronteiras. Criticou o exotismo como estratégia de mercado e defendeu o compromisso com a verdade estética e política da própria voz.
Para além do cânone, da técnica ou da recepção internacional, a maior alegria de Hatoum, como confessou, é ser lido por jovens e professores em escolas públicas e bibliotecas como a Mário de Andrade. “Troco todas as traduções por um estudante que entende o que acontece no Cinzas do Norte”, disse, encerrando a noite com aplausos calorosos.
Na FLIMA 2025, a homenagem a Hatoum não foi uma consagração estática, mas uma renovação da escuta e da pergunta que sua obra lança ao Brasil: o que nos torna capazes de seguir contando e enfrentando as nossas histórias?
Fonte: ICL Notícias