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FLIMA 2025 abre com crítica geopolítica e sons do Oriente

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Um recital de alaúde sírio em pleno coração da Serra da Mantiqueira abre a FLIMA 2025. Rajana Olba, músico refugiado da Síria e hoje residente em São Paulo, inaugura o festival com o recital “Retrato Sonoro de um Certo Oriente”, em diálogo com a obra de Milton Hatoum, autor homenageado da edição. Mas seu repertório vai além da homenagem. Cada música é um fragmento de história. Um poema feito de perdas, encontros e recomeços.

Ele apresenta composições próprias e canções tradicionais do mundo árabe. Uma delas, “Mensagem para minha cidade”, foi escrita logo após sua chegada ao Brasil. Outra, “A viagem de Vigió”, narra as vivências de pessoas refugiadas que, como ele, deixaram suas terras em busca de vida nova.

Entre notas de melancolia e esperança, o recital abre o festival lembrando que há deslocamentos que são também formas de permanência. Que há territórios que se recriam na memória. Que falar de literatura é, muitas vezes, falar de exílio, de resistência e da busca por abrigo.

Entre montanhas e palavras: FLIMA 2025 abre com crítica geopolítica e sons do Oriente

Apresentação da FLIMA

A FLIMA – Festa Literária Internacional da Mantiqueira chega à sua 7ª edição reafirmando que é um espaço de convergência entre literatura, política, território e resistência. Realizada entre os dias 15 e 18 de maio de 2025, no município de Santo Antônio do Pinhal (SP), a edição deste ano carrega o tema “Deslocamentos e Pertencimentos”.

O evento é uma iniciativa construída a muitas mãos, com apoio do PROAC (Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo), recursos do Governo Federal e apoio da Prefeitura Municipal de Santo Antônio do Pinhal.

Criada por editoras e agentes culturais independentes, com uma curadoria de Roberto Guimarães, Cristiane Tavares e Maria Carolina Casati, que tensiona os limites do cânone literário, abrindo espaço para saberes historicamente marginalizados no campo intelectual. Isso se materializa tanto em mesas centrais quanto em oficinas formativas e intervenções artísticas, revelando um esforço claro de descentralização epistêmica, com vozes indígenas, feministas, periféricas e dissidentes, e onde a literatura aparece como ferramenta viva de construção coletiva e crítica do presente.

A programação é vasta e diversa, tanto nos temas quanto nas presenças. Entre as autoras convidadas, destacam-se Milly Lacombe, Bianca Santana, Chirley Pankará, Ana Rüsche, Prisca Agustoni, Esmeralda Ribeiro e Lílian Paula Serra, entre muitas outras. Coletivos feministas e periféricos ocupam espaços com rodas de conversa e oficinas que abordam desde a escrita negra até o amor em tempos de algoritmos. A mesa “A culpa é do feminismo?”, por exemplo, promete provocar debates sobre os embates culturais em torno das conquistas e resistências feministas no Brasil.

Além da questão de gênero, o festival traz forte presença indígena, com nomes como Chirley Pankará e Kaká Werá, que abordam cosmovisões, espiritualidade, memória ancestral e epistemologias não ocidentais. A mesa “Ciência encantada: nos caminhos de Jurema”, que conta com o lançamento do livro homônimo de Marcelo Leite, por exemplo, propõe outras formas de entendimento do mundo que incluem o encantamento como forma de conhecimento.

As migrações e deslocamentos forçados também ocupam um lugar de destaque. O jornalista Jamil Chade, presente em duas mesas, analisa os fluxos migratórios globais, os efeitos das guerras e as políticas de fronteira, sempre articulando o contexto internacional com os desafios brasileiros. Na mesa “Deslocamentos forçados: migração e refugiados”, no dia 17 (sábado), o debate explorar a crise humanitária como questão política e simbólica.

A emergência climática é outro eixo forte. A mesa “Os limites da palavra” discute os desafios éticos da linguagem diante da devastação ambiental: como nomear o colapso? Como produzir literatura em meio à perda da biodiversidade? A resposta está na tentativa de inventar novas formas de dizer, e de resistir.

Por fim, o tema da tecnologia também atravessa a programação. A roda de conversa  “Sedução algorítmica”, com Júlio de Ló, convida à reflexão sobre como os algoritmos moldam nossa percepção, comportamento e afetos, conectando-se a um debate mais amplo sobre vigilância, subjetividade e manipulação digital.

A FLIMA não propõe respostas prontas. Mas seu gesto é claro: abrir espaço para o dissenso, para o que é indizível, para o que foi silenciado. Construir, a partir da literatura, uma linguagem em que política e existência se entrelaçam como formas de luta e de pertencimento.

Mesa de abertura: “Distopia Americana: Trump e a nova (des)ordem mundial”, com Jamil Chade

A mesa de abertura da FLIMA 2025 não poupou contundência. Intitulada “Distopia Americana: Trump e a nova (des)ordem mundial”, o encontro trouxe ao palco o jornalista e escritor Jamil Chade, com mediação de Roberto Guimarães. A provocação partiu de três perguntas disparadas pela curadora Cristiane Tavares:

  1. O que a volta de Donald Trump ao poder nos diz sobre o momento histórico atual?
  2. 2. Em que medida essa visão de mundo que enxerga o outro, não como diferente, mas como inimigo, está presente no Brasil e em outros países?
  3. 3. Quais são as consequências práticas e simbólicas de um segundo mandato de Trump para os EUA e a geopolítica global?

Jamil respondeu com a autoridade de quem vive hoje em Nova York, mas percorreu nos últimos meses 15 estados americanos, dos mais ricos aos mais empobrecidos, dos centros urbanos à fronteira do México. Suas palavras foram um alerta: não estamos diante de uma ameaça à democracia, ela já está sendo desmontada à luz do dia, com orgulho, método e aparato ideológico.

Com base em sua pesquisa de campo, Chade desmistificou a imagem dos EUA como farol da democracia. Expôs a crise profunda dos dois grandes mitos que sustentaram a identidade americana: o sonho americano (ascensão social) e o destino manifesto (a ideia messiânica de que os EUA são os “escolhidos” para liderar o mundo). Segundo ele, 41% da população americana não acredita mais nesse sonho, número que sobe para 65% entre os mais pobres. O resultado desse colapso simbólico é um vazio político ocupado por populismo, desinformação, fanatismo religioso e uma nova ultradireita organizada e internacionalizada.

O jornalista também destacou o caráter racista, misógino e xenofóbico da nova (des)ordem, trazendo dados sobre a política migratória de Trump: no primeiro dia de governo, 100 mil pedidos de refúgio foram suspensos, ao mesmo tempo em que se abria exceção para fazendeiros brancos da África do Sul, que receberam cidadania, casa, geladeira, subsídio e plano de telefonia celular — um apartheid diplomático que escancara quem é “aceitável” ou não na geopolítica do ódio.

Chade ainda compartilhou trechos de sua entrevista exclusiva com o “Viking do Capitólio”, personagem emblemático do ataque ao Congresso americano. O que se viu, segundo ele, foi uma narrativa messiânica que legitima o extremismo em nome de um “enviado de Deus” — no caso, o próprio Trump. “Essa nova extrema direita não quer apenas vencer eleições. Ela quer refundar a sociedade, restabelecendo a supremacia branca, o patriarcado e a religião como critério de cidadania.”

A crítica se ampliou para a censura a livros nas escolas e bibliotecas públicas americanas — mais de 10 mil títulos banidos entre 2023 e 2024, segundo a PEN America. Obras que tratam de racismo, diversidade sexual e feminismo são as mais atacadas. Uma guerra cultural travada com leis, decretos e algoritmos.

Ao fim da mesa, o que se ouviu foi um silêncio inquieto, de início de uma reflexão: como reagir ao avanço global da barbárie? Que papel têm a literatura, a educação e os festivais como a FLIMA nesse combate?

Jamil ofereceu uma resposta simbólica já na abertura: “um festival literário não é só um festival literário. É a construção de cidadania, é construção de dignidade, é construção de democracia.”

Literatura como refúgio e enfrentamento

A FLIMA abriu sua edição 2025 com uma mensagem clara: em tempos de barbárie organizada, a literatura não pode se dar ao luxo da neutralidade. O que se viu na mesa com Jamil Chade foi mais do que uma análise geopolítica, foi um chamado ético. Um alerta de que os projetos de extrema direita pelo mundo não são desvios ou acasos históricos, mas sim estratégias meticulosas de destruição de direitos, apagamento da diversidade e controle do imaginário coletivo.

Diante disso, a escolha da FLIMA por iniciar o festival com esse debate é, ela própria, um gesto político. Ao invés de abrir com celebrações ou autocomemoração, o festival escolheu a inquietação. Começou com o alerta, com a pergunta difícil, com a exposição da ferida. Porque é justamente aí que a literatura pode intervir — não como solução, mas como campo de escuta, de confronto e de reinvenção.

Mais do que uma feira, a FLIMA reafirma-se como um território de encontros insurgentes, onde a palavra circula entre autores e leitores, artistas e militantes, pensadores e poetas. Um espaço em que se reconhece que a leitura, como a arte, não transforma o mundo sozinha, mas transforma quem age sobre ele.

Ao reunir editoras independentes, vozes indígenas, feministas, periféricas, ambientalistas, migrantes, tecnocríticos e sonhadores, a FLIMA não constrói apenas uma programação, constrói uma ecologia da palavra, que brota do chão, da memória, do corpo, da floresta, da rua, da tela e da montanha.

Em sua estreia, o festival mostrou que a distopia não é mais futuro especulativo, ela já está em curso. Mas também lembrou que toda distopia carrega em si a possibilidade de resistência. E, se há um lugar onde essa resistência começa, é na escuta. Escutar o outro, escutar as vozes caladas, escutar o que o poder quer silenciar.



Fonte: ICL Notícias

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