Caos na saúde: a luta pela vida em meio à crise sanitária no Amazonas

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Republicado de fas-amazonia.org

No dia 12 de janeiro de 2021, a artesã e agricultora Rosimere Teles, indígena da etnia Arapaço, moradora do bairro Santa Etelvina, na Zona Norte de Manaus (AM), perdeu o marido para a Covid-19. O falecimento de Walter, de origem Baré, veio após uma peregrinação em busca de atendimento em hospitais públicos e particulares da cidade. “Andamos atrás de atendimento para fazer o teste em janeiro, já no meio do colapso. Foram dias difíceis. Não conseguimos fazer teste na rede pública e procuramos uma clínica privada. Fizemos um raio-x do pulmão do meu marido também na rede particular, no dia 11 de janeiro, mas os resultados só iam sair após três dias úteis”, conta. Walter não teve tempo de ser diagnosticado nem tratado. Faleceu à espera de um novo exame, no trajeto de casa até uma unidade de saúde.

Dois dias após a morte de Walter, os hospitais de Manaus e do interior do estado viveriam a crise da falta de oxigênio medicinal. O aumento do número de internações por Covid-19 colapsou as unidades de saúde, gerando cenas de verdadeiro caos na cidade. Familiares faziam fila para comprar direto com fornecedores o insumo que garantiria a sobrevivência dos pacientes. Dezenas de pessoas morreram em decorrência da falta de O2 nos hospitais. Nos primeiros 21 dias de 2021, o Amazonas enterrou mais vítimas de coronavírus do que em todo o ano de 2020. Foram 1333 sepultamentos em janeiro contra 1285 no ano anterior. Até março de 2021, foram registrados mais de 334 mil casos confirmados e 11,6 mil óbitos pela doença no Estado.

No ápice da escassez do oxigênio, artistas, entidades e voluntários se mobilizaram para garantir a compra, transporte e doação do insumo para os hospitais. Entre as iniciativas, a Fundação Amazônia Sustentável (FAS), no âmbito da Aliança Covid Amazonas, doou miniusinas e 50 concentradores de oxigênio para municípios do interior, onde a crise se agravou. O esforço para garantir atenção em saúde para comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas da Amazônia profunda faz parte de uma série de ações da iniciativa liderada pela FAS, que tem como um dos principais parceiros a Embaixada da França. Foram doadas 28.094 cestas básicas, mais de 380 mil máscaras, combustível emergencial, mil oxímetros e mais de 25 mil unidades de álcool em gel para as populações tradicional e indígena de Unidades de Conservação (UC) do Amazonas, além de comunidades urbanas periféricas de Manaus.

Durante a primeira onda do coronavírus, a comunidade de Rosimere Teles foi uma das beneficiadas com cestas básicas e materiais de higiene pela FAS. A indígena teve o trabalho na agricultura duramente afetado pela pandemia, e a morte do companheiro foi um grande golpe em um ano já tão sofrido. Ela atribui o colapso da saúde à falta de conscientização da população sobre as medidas de prevenção contra o vírus. “Deveria ter havido uma campanha nacional para o uso de máscaras e distanciamento como a ciência orientava. Não adiantou alguns ficarem em quarentena enquanto outros ignoravam essa doença que mata. A consequência disso é a morte de mães, pais e lideranças, que deixaram filhos órfãos. Quem vai cuidar dessas crianças e adolescentes?”, lamenta Rosimere.

Uma crise sanitária e social

O colapso da saúde no Amazonas está possivelmente ligado ao surgimento de uma nova variante do coronavírus, a P1, de propagação muito mais rápida que as cepas anteriores, aliado ao relaxamento das medidas de prevenção da doença. Evidências da nova variante foram observadas ainda em dezembro de 2020 pelo painel de indicadores da Covid-19, do Atlas ODS Amazonas da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “Em 5 de dezembro, detectamos uma rápida aceleração no número de casos e mortes. O mapa mudou e as atualizações subiram de forma muito curiosa. O aumento de hospitalizações não acontecia com o aumento de casos. Foi o primeiro sinal da segunda onda. O que estávamos observando era uma variante. A subida de casos foi muito mais acelerada e intensa do que na primeira onda”, relata o coordenador do Atlas, professor Henrique Pereira.

“As ofertas de UTI não se dimensionaram corretamente à demanda desse insumo básico [oxigênio]. Havia leitos, mas a demanda foi acima da expansão do sistema, então o sistema privado colapsou, fechou emergência, o número de leitos aumentou, não houve suprimento de oxigênio e aconteceu a tragédia de 14 de janeiro em Manaus”, avalia o coordenador.

Pereira não atribui o agravamento da pandemia apenas à negligência da população manauara, mas à falta de medidas de enfrentamento mais firmes da doença por parte das esferas do poder. A opinião é corroborada pela médica sanitarista e diretora do programa global da AIDS Healthcare Foundation Brazil (AHF), Adele Benzaken. “O que faltou foi seriedade em todos os níveis para tomar medidas baseadas em evidências científicas. Observamos um fluxo de informações totalmente desconectadas, com o Ministério da Saúde dizendo uma coisa e as instituições e profissionais de saúde dizendo outras”, argumenta. “Além disso, o Brasil disponibiliza de um sistema de atenção primária que pouco foi envolvido no enfrentamento dessa pandemia. Poderia ter sido um bom veículo de informação correta para a população, para orientar sobre o isolamento dos pacientes, evitar a transmissão domiciliar e ajudar as pessoas a entenderem melhor essa nova infecção”, completa.

A propagação das fake news sobre o coronavírus também se provaram prejudiciais ao enfrentamento da pandemia. Informações falsas levaram parte da população a desprezar o uso obrigatório de máscaras, desrespeitar o distanciamento social, utilizar remédios ineficazes contra a infecção e questionar as medidas de segurança adotadas. “As fake news são danosas do ponto de vista individual e coletivo. Por exemplo, a pessoa que não acredita que exista a Covid-19 e por isso não usa máscara coloca-se em risco de se infectar e passar o vírus para outro. A percepção errônea de que se trata de uma ‘gripezinha’ da qual a maioria das pessoas não morre é outro exemplo. Quem gostaria de estar entre os 5% da população que adoece de forma grave, onde 1% dela falece? Ninguém quer jogar roleta russa com o coronavírus”, diz Adele.

A médica enfatiza a importância da população seguir as medidas que minimizem o risco da infecção: usar máscara, lavar as mãos, utilizar o álcool em gel, manter o distanciamento social e evitar aglomerações. “É a melhor forma de se prevenir. A pandemia é uma calamidade e devemos encará-la de maneira séria”, reforça.

A saúde no interior

Se o avanço da pandemia preocupava a  rede de saúde na capital do Amazonas, no interior do estado a situação era ainda mais grave. Os municípios não possuem estrutura para tratamento de casos mais graves da Covid. Manaus é a única cidade que possui UTI; os pacientes do interior precisam ser transferidos para a capital, o que é um desafio dado a distância e a logística complicada de transporte. Durante a crise de oxigênio, o fluxo de transferência do interior para a capital foi impossibilitado por causa do colapso que Manaus vivia. Municípios como Iranduba, Manacapuru e Itacoatiara também ficaram sem o insumo. Os pacientes vindos do interior tiveram que ser transferidos para outros estados.

“Essa crise acendeu o alerta para a precariedade da saúde pública na Amazônia profunda, nas comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas e territórios quilombolas”, diz o Superintendente Geral da FAS, Virgilio Viana. A mobilização da Aliança Covid Amazonas para conseguir oxigênio e equipamentos para os hospitais do interior foi uma pronta resposta à crise, e mais um esforço da iniciativa em prol da saúde da população ribeirinha e indígena.

Um dos parceiros destaques foi mais uma vez a Embaixada da França, que colaborou para a doação de oito ambulanchas e 19 canoas para o transporte de pacientes, além de 2,5 mil litros de combustível para apoio emergencial e fomento da produção local. Para driblar a distância, a FAS também promoveu ações de telessaúde para realizar teleatendimentos, webpalestras e teleorientações, envolvendo especialistas da área de saúde e beneficiando mais de 3,5 mil pessoas. Isso foi possível graças à instalação de 113 pontos de telessaúde com internet e placa solar para auxiliar no acesso à energia elétrica, em 24 unidades de conservação (UCs) e em três terras indígenas (TIs) na Amazônia.

“A telessaúde foi um dos eixos que se mostrou muito eficiente ao usar a energia solar para segurar as baterias e a conexão via internet desses postos com a estrutura tanto do SUS nas áreas urbanas quanto nas faculdades de medicina que fazem parte da Aliança Covid Amazonas”, destaca Virgilio.

O papel dos agentes comunitários de saúde (ACS) na prevenção de doenças e promoção da saúde nos locais mais remotos também foi reforçado pela Aliança. Em parceria com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (Cetam), a FAS realizou um curso intensivo de aperfeiçoamento e cuidados com a Covid-19 para os agentes na comunidade do Tumbira, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Sustentável (RDS) do Rio Negro.

O desafio da vacinação

Em janeiro de 2021, o Amazonas e o resto do país iniciaram a vacinação contra a Covid-19 para os grupos prioritários, compostos de idosos e profissionais de saúde da linha de frente. A imunização começou depois de países como Estados Unidos e Inglaterra e dos vizinhos sul-americanos Argentina e Chile. Proporcionalmente, o Amazonas é o estado brasileiro que mais vacina sua população: em quase três meses de imunização, mais de 360 mil habitantes receberam a primeira dose. Isso equivale a apenas 8,57% da população amazonense, que abriga mais de 4,2 milhões de pessoas. Vários especialistas alertam que, se o plano de vacinação seguir nesse ritmo, o Brasil só atingirá a imunidade de rebanho por meio da imunização contra a Covid-19 em 2022.

Enquanto as esferas governamentais se mobilizam para assegurar as doses necessárias, a FAS já iniciou tratativas com as secretarias municipais de saúde para apoiar a vacinação no interior do Amazonas. De acordo com Virgilio Viana, o objetivo é evitar ao máximo que os moradores de comunidades e aldeias remotas tenham que se deslocar até os centros urbanos, expondo-se ao risco de contrair o vírus ou disseminá-lo em seus locais de origem.

Outro ponto crucial é o combate à desinformação em relação à vacina. A FAS lançou a campanha #VacinaParente para conscientizar a população  indígena da importância de se imunizar, além de combater as fake news sobre a segurança e a eficácia da vacina. “O mundo tem grande experiência com as vacinas contra diversos vírus, no entanto, só vai funcionar quando todos tomarem a vacina. Enquanto existir um grupo de pessoas não imunizadas, o vírus vai continuar circulando na comunidade. Para reduzir o número de casos, precisamos de uma cobertura vacinal de no mínimo 50% da população. Isso ainda vai demorar alguns meses, por isso é importante que todos que tiverem a oportunidade se vacinem”, informa a médica Adele Benzaken.

O futuro da saúde na floresta

O Brasil alcançou em março de 2021 a marca de mais de mil indígenas mortos em decorrência do coronavírus. Os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) também revelam mais de 50,4 mil casos de contaminação confirmados e 163 povos indígenas. O Amazonas concentra o maior número de indígenas mortos pela doença. Indígenas como Walter de Oliveira, do começo desta história, que pereceram sem assistência adequada.

A realidade precária da atenção em saúde para os povos amazônidas motivou a FAS a elaborar o projeto “SUS na Floresta” para melhorar o atendimento dessa população no Amazonas. A iniciativa é realizada por meio do programa Todos pela Saúde com o objetivo de repensar o modelo de atenção básica de saúde na região. Serão quatro eixos de trabalho: diagnóstico e atenção básica na saúde em comunidades e aldeias; transporte de emergência para hospitais estaduais; tratamento nos municípios no interior; e retomada pós-calamidade Covid-19.

“É urgente investirmos no desenho e implementação do que chamamos de SUS na Floresta. A resposta está numa abordagem sistêmica que envolve todos os componentes, desde a nutrição, cuidados na primeira infância, desenvolvimento de bons hábitos de esporte e saúde e visitas domiciliares de agentes de saúde, enfim, tudo o que é voltado para a promoção da saúde”, explica o superintendente da FAS.

A realidade da saúde e da vida na Amazônia é diferente do restante do Brasil. O “SUS na Floresta” representa um caminho para analisar, debater e propor ajustes no sistema para melhor adequá-lo à realidade da região, diz Virgilio. “Existe um potencial enorme de melhoria da qualidade de vida a partir do aproveitamento da biodiversidade da Amazônia de maneira mais abrangente”, finaliza.

 

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