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A raiva nossa de cada dia

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Leitora, leitor, hoje volto aqui para mergulhar no universo linguístico e semântico de “raiva”, da palavra “raiva” e suas origens. De fato, para além de parar pra pensar por que passamos tanta raiva diante do que se passa num mundo invariavelmente injusto, devemos considerar também a gênese histórica da palavra. Assim, no coração do idioma que nos une, a palavra “raiva” ressoa com uma gravidade singular, ecoando tanto a tempestade visceral da alma – a cólera que incandesce, o furor que cega, o ódio que petrifica – quanto o espectro de uma doença ancestralmente temida, a hidrofobia – a raiva, o vírus transmitida pela mordida de animais.

De fato, a dualidade que veste “raiva” de significados não é capricho apenas da língua portuguesa. Longe disso, tal característica é herança direta de sua origem latina, “rabies”. Tal constatação indica que o laço conceitual entre os paroxismos da doença e a erupção da cólera extrema é antigo. A enfermidade, com seus espasmos de fúria e agressividade, teria ofertado um referente poderoso para o – digamos – batismo da emoção “raiva”, tecendo um fio de significados que atravessou os séculos.

A etimologia de “raiva” nos conduz ao Lácio antigo, à Roma Antiga,  ao latim, onde estão suas fundações. Portanto, “rabies” – substantivo – era, primordialmente, “desvario”, “frenesi”, “cólera desmedida”, “fúria indômita”. De modo mais circunscrito, o termo era também o nome da aflição que hoje conhecemos por raiva, a assolar tanto os animais quanto os “animais humanos”. Seu emprego nos pergaminhos da antiguidade clássica atesta a aplicação do vocábulo para pintar quadros de emoção ou conduta violenta, desgovernada, bem como a própria patologia que por tais manifestações se anunciava.

Com efeito, este nome, este substantivo, brota diretamente do verbo rabere. O verbo rabere traduzia o “estar louco”, o “delirar febril”, o “enfurecer-se cego”, o “arder em fúria”. Este verbo captura a dinâmica, o estado subjacente ao substantivo rabies, evidenciando a fundação verbal para a ideia de um descontrole raivoso. Os romanos, ao cunharem e utilizarem rabies e rabere, deram forma lexical à conexão que percebiam entre os sintomas violentos e delirantes da doença e o conceito mais amplo de cólera extrema ou loucura. O termo rabies servia então de ponte entre estes dois domínios do pensamento. A eleição de um mesmo radical para descrever tanto um estado de ânimo intenso quanto uma enfermidade física com manifestações comportamentais brutais reflete uma cosmovisão antiga. Nesta lente, distúrbios emocionais profundos e doenças graves, principalmente aquelas que alteravam o comportamento de forma tão drástica, nem sempre eram nitidamente separados em sua roupagem linguística. Tal indistinção pode ser creditada às semelhanças percebidas na índole incontrolável e destrutiva de ambos os fenômenos. A doença da raiva, com sua sintomatologia aterradora, oferecia um exemplo paradigmático dessa fúria que parecia transbordar a simples emoção, avizinhando-se de uma condição patológica, uma espécie de desrazão brutal.

Já a transição de rabies para a forma portuguesa “raiva” é um eloquente testemunho dos processos de transformação linguística que formaram e lapidaram as línguas românicas a partir do latim. O latim vulgar foi o palco de uma série de transformações fonéticas, incluindo transmutações vocálicas e uma inclinação geral à simplificação das arquiteturas fonológicas. A evolução subsequente pode ser rastreada até o “galego-português”, o idioma medieval, precursor comum do português e do galego modernos. Nesta fase, encontra-se atestada a forma ravia. Esta forma intermediária é um elo crucial, pois demonstra um desenvolvimento fonético que antecede a configuração final da palavra em português.

O interessante é notar que esta evolução fonética não é um evento isolado ou fortuito, mas sim um exemplo da aplicação de leis fonéticas sistemáticas que operaram durante a gestação do português a partir do latim. O fato é que ao longo destas transformações, o núcleo semântico dual da palavra – a designação da fúria e da doença – foi, em grande parte, resguardado. Esta persistência foi continuamente fortalecida pela observação direta dos sintomas da doença, que forneciam um correlato concreto e vivo para a emoção abstrata da cólera intensa.

Sendo o português um filho do Lácio – a tal da “última flor do Lácio” – partilha a sua herança com outras línguas irmãs, como o espanhol, o italiano, o francês e o romeno. Uma análise que ponha lado a lado os cognatos de “raiva” nestas línguas, todos eles originários do latim rabia(m), revela tanto a ancestralidade comum quanto as histórias fonéticas divergentes, fruto das trajetórias evolutivas singulares de cada idioma. O espanhol rabia mantém-se foneticamente muito próximo da forma latina vulgar conservando o “b” e o “a” final, apresentando-se como uma forma mais antiga. Em italiano, “rabbia” destaca-se pela geminação (duplicação) do “b”, uma característica distintiva do idioma da bota. Em contraste, o francês “rage” exibe uma evolução fonética diferenciada, com a perda do “b” intervocálico. Tal é a influência da condição e da palavra até mesmo numa língua anglo-saxã, como o inglês, onde o termo também existe como “rage”, tendo sido influência direta da versão francesa. Não nos esqueçamos que as línguas germânicas e anglo-saxãs também foram influenciadas pelo latim romano.

O fato é que a história etimológica de “raiva” está umbilicalmente ligada à maneira como a doença e a emoção foram percebidas e nomeadas ao longo do tempo. É crucial reiterar que o termo “raiva” (e seu predecessor latino rabies) abarcou, historicamente, tanto a doença quanto a emoção. Esta sobreposição não é um mero acaso. Os sintomas aterradores e violentos da raiva em animais e humanos – agressividade, agitação, fúria, delírio – fornecem uma manifestação concreta do que se assemelha à fúria extrema e descontrolada.

A doença, com suas manifestações físicas de fúria, provavelmente serviu como um referente visceral que reforçou, ou quiçá até ajudou a aprimorar, a expressão linguística para a emoção abstrata. As percepções antigas da doença são rastros, sinais que apontam para a presença do passado no presente. Na Grécia Antiga, por exemplo, o termo lýssa, significando “frenesim”, “loucura”, “fúria marcial”, era frequentemente empregado para designar a raiva. É significativo que esta raiz grega seja utilizada no nome do gênero do vírus da raiva, “Lyssavirus”, demonstrando uma conceitualização paralela da doença noutra grande cultura clássica, focada na alteração comportamental violenta. O enciclopedista romano Aulus Cornelius Celsus (Século I da Era Comum), em sua obra “De Medicina”, legou-nos uma descrição clínica da raiva, então frequentemente denominada hidrofobia devido à aversão à água manifestada pelos acometidos pela doença. De particular relevância é sua identificação de um agente transmissível responsável pela doença. Celsus referiu-se a este agente como “virus”, termo latino que originalmente significava “veneno”, “peçonha”, “líquido viscoso” ou “secreção deletéria”.

Embora o “virus” de Celsus não corresponda ao conceito biológico moderno, sua utilização do termo no contexto da raiva é etimologicamente significativa para a posterior adoção científica da palavra “vírus” para designar os agentes patogênicos microscópicos. A jornada etimológica de “raiva” cruza-se, assim, com a história da medicina e com a própria etimologia do termo “vírus”. A tentativa de Celsus de conceitualizar um agente material de contágio, um “veneno”, representa um passo “proto-científico” para além de explicações puramente sobrenaturais para a doença, com implicações profundas para o léxico científico futuro. Outras figuras da Antiguidade, como Plínio, o Velho, também interpretaram a “raiva”, frequentemente misturando observações mais objetivas com visões outras, como a crença na cura através da ingestão de cinzas da cabeça do cão raivoso. A existência paralela de termos como o latim rabies e o grego lyssa para a mesma doença aterradora, ambos conotando “loucura” ou “frenesim”, sugere que o aspecto mais impressionante da raiva para os observadores antigos era a sua profunda alteração do estado mental e do comportamento, conduzindo a ações violentas e descontroladas.

A dualidade da palavra, do termo, do conceito – entre doença objetiva e abstração do estado de humor – em diversas línguas, evidencia que para além da raiva patológica, do “veneno” ou vírus da saliva, a condição humana sempre foi acometida de uma fúria, de um descontrole emocional digno de ser comparado com uma doença. Certamente, a raiva da abstração anímica é também embalada por venenos, mas estes os das relações entre os seres humanos, oriundos da “loucura” de suas razões sociais e econômicas, da desfaçatez de suas múltiplas injustiças e pecados capitais. Ter raiva ou não ter, eis a questão.

Ps.: A primeira vez que prestei vestibular na Fuvest (USP), foi para o curso de Letras. Acabei não trilhando o mesmo, mas nunca perdi o fascínio por aquilo que nos define: a linguagem e suas diatribes. 

 

Dois rostos masculinos expressando raiva misturada com medo. Gravura francesa do século XVIII, de B. Picart, 1713, segundo C. Le Brun. Fonte: Wikmedia, domínio público. 



Fonte: ICL Notícias

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