Início Notícias Brasil A incrível saga de Gino Meneghetti: o Gato dos Telhados

A incrível saga de Gino Meneghetti: o Gato dos Telhados

2


ouça este conteúdo

00:00 / 00:00

1x

São Paulo, início do século XX. Enquanto a elite cafeeira erguia seus palacetes nos bairros mais nobres da cidade e o centro fervilhava de trabalhadores e imigrantes de todas as partes, um homem de estatura mediana, olhar penetrante e bigode bem aparado (às vezes postiço) fazia tremer os alicerces da alta sociedade paulistana. Seu nome? Gino Amleto Meneghetti, o homem que a imprensa sensacionalista e o imaginário popular transformaria no mais célebre ladrão da história de São Paulo.

Nascido em 1878 na pacata Vicopisano, região da Toscana, Amleto Giotto Sabindo Forestal Menichetti (sim, o nome era quase tão comprido quanto sua ficha criminal) não parecia destinado à fama. Filho de um simples transportador de areia do rio Arno, o pequeno Gino logo descobriu que tinha mais talento para surrupiar galinhas do que para o trabalho árduo. Aos onze anos, já conhecia o reformatório; aos treze, era cliente habitual das cadeias locais. Não que ele se importasse. Para Meneghetti, a sociedade era injusta por natureza, e ele apenas redistribuía a riqueza à sua maneira. “Toda propriedade é um roubo”, dizia, citando o francês Proudhon com a mesma naturalidade com que escalava muros. Um intelectual do crime, per Dio! Quem diria que por trás daquele olhar astuto se escondia um leitor de filosofia política? Mas não nos enganemos: nosso anti-heroi não era exatamente apenas um Robin Hood filosofante. Era, antes de tudo, um rebelde que encontrou no crime sua forma particular de protesto. E que protesto mais eficiente do que esvaziar os cofres da burguesia?

Quando a polícia italiana começou a apertar o cerco, Meneghetti fez o que milhares de italianos faziam naquele tempo: embarcou para o Brasil, terra onde, diziam, até as bananas nasciam em árvores de ouro. Em 1913, aos 35 anos, desembarcou no Porto de Santos com uma mala cheia de roupas e um dossiê policial que o precedia. “Elemento perigoso”, advertiam as autoridades italianas. Se soubessem que estavam, na verdade, exportando o futuro “Rei dos Ladrões” para o Brasil, talvez tivessem cobrado uma taxa extra de embarque. Em São Paulo, Meneghetti arranjou uma tia para hospedá-lo, encontrou uma moça para casar (Concetta Tovani, que ele “romanticamente” raptou de um restaurante!) e tentou um emprego honesto como pedreiro, um clássico dos italianos em São Paulo. Este último durou pouco – jogou um balde de cal no rosto do mestre de obras! Aparentemente, a vida no lodo dos canteiros de obras não oferecia a adrenalina que nosso protagonista tanto apreciava. Foi então que Gino decidiu aplicar seus talentos especialíssimos. Seu primeiro grande feito? Arrombar o assoalho da Casa Sarli, tradicional loja de armas importadas na Avenida São João. Levou o que havia de melhor, mostrando desde cedo seu refinado gosto por artigos de luxo. A polícia, claro, não demorou a encontrá-lo. Mas este seria apenas o começo de uma longa e tumultuada relação entre Meneghetti e as autoridades paulistanas.

Se existe algo que os ricos detestam mais do que pagar impostos, é serem roubados. E Meneghetti parecia sentir um prazer quase gastronômico em servir-se nas mansões da elite paulistana. Avenida Paulista, Angélica, Brigadeiro Luís Antônio – os endereços mais chiques da cidade eram seu menu degustação particular. Seu método era de uma simplicidade genial: agia sempre sozinho (nada de dividir o butim), nunca ficava mais de cinco minutos em cada residência (tempo suficiente para um café expresso e para encher os bolsos) e tinha uma técnica infalível para saber quais casas estavam vazias. Vigiava as garagens, anotava as placas dos carros e depois verificava na Praça da República quais veículos estavam estacionados. Elementar, meu caro Watson! Ou melhor, “elementare, mio caro amico”!

Mas o que realmente fez a fama de Meneghetti foram suas escapadas pelos telhados. Com a agilidade de um felino e a precisão de um equilibrista, saltava de uma casa para outra, deixando policiais ofegantes e furiosos lá embaixo. Não é à toa que ganhou o apelido de “Gato dos Telhados”. Dizem as línguas mais ferinas que ele até ronronava quando encontrava um cofre particularmente recheado. O mais curioso é que Gino tinha suas próprias regras morais: nada de violência, nada de armas (bem, quase sempre), nada de drogas. E, principalmente, nada de roubar dos pobres. Para que tirar de quem já tem pouco? Muito mais divertido – e lucrativo – era aliviar o peso das carteiras dos barões do café e dos industriais emergentes e dos grandes comerciantes, como ele dizia, “esses ladrões com paciência.” E o que fazia com o dinheiro? Parte ficava para seu sustento, claro (um ladrão também precisa comer), mas dizem que distribuía boa parte entre amigos, parentes e necessitados. Um Robin Hood da Pauliceia Desvairada, de chapéu e bigode, saltando pelos telhados de São Paulo.

Contudo, nem só de fugas espetaculares vivia o “bom ladrão”.  Meneghetti conheceu bem o sistema prisional brasileiro – talvez mais intimamente do que gostaria. Foi detido inúmeras vezes, mas parecia ter alergia às grades. Sua primeira fuga memorável foi da Cadeia da Luz, onde, confinado numa solitária em forma de poço, escalou as paredes, forçou a tampa de ferro e escapou completamente nu pelas ruas de São Paulo. Imagine o susto dos transeuntes! Quando capturado, era submetido a torturas e humilhações. Mas mesmo sob os piores castigos, mantinha uma dignidade quase teatral. “Io sono un uomo” (“Eu sou um homem”), repetia, como se lembrasse aos torturadores que, apesar de tudo, sua humanidade permanecia intacta. Uma frase simples que, na boca de Meneghetti, ganhava contornos de manifesto existencial.

A imprensa, sempre ávida por histórias sensacionalistas, transformou-o em uma espécie de celebridade do submundo. “Il Nerone di San Paolo!” (O Nero de São Paulo), anunciavam os jornais, comparando-o ao imperador romano. Exagero? Talvez. Mas Meneghetti sabia aproveitar os holofotes e fazia de sua própria sina uma obra de cinema. Certa feita, disfarçado, infiltrou-se em uma coletiva de imprensa da polícia que anunciaria sua captura. Ao final, entregou um bilhete a um fotógrafo: “Por que não me prenderam?”. O homem tinha estilo, não podemos negar. Seus disfarces eram lendários. De dia, andava com terno e chapéu no meio da multidão, com um bigode postiço tão convincente que talvez nem a própria mãe o reconheceria. À noite, transformava-se no terror dos ricaços, o fantasma que esvaziava cofres e desaparecia sem deixar rastros. Um verdadeiro artista da transformação, que faria Stanislavski aplaudir de pé.

Como toda boa história, a saga de Meneghetti também teve seu ocaso. Não foi uma bala “perdida”, nem uma queda fatal de algum telhado que encerrou sua carreira. Foi algo muito mais implacável: o tempo. Quando os joelhos começaram a falhar e o fôlego já não era o mesmo, o “Gato dos Telhados” teve que se aposentar. Bem, quase. Aos 92 anos – sim, você leu certo, noventa e duas primaveras! – foi preso tentando arrombar uma casa na rua Fradique Coutinho, em Pinheiros. Aparentemente, a aposentadoria não combinava com seu espírito aventureiro. Imagine a cena: um senhor de idade, provavelmente com dores nas costas e reumatismo, tentando escalar uma parede. Patético? Talvez. Admirável? Sem dúvida.

Nos seus últimos anos, chegou a ganhar uma banca de jornal do prefeito Faria Lima – talvez na esperança de que vendendo notícias, deixasse de protagonizá-las. Dizem que a banca ficou mais fechada do que aberta. Afinal, velhos hábitos são difíceis de abandonar, e madrugar para trabalhar no “tempo do capital” nunca foi o forte do nosso protagonista. Gino Meneghetti faleceu em 1976, aos 97 anos, vítima de uma trombose. Sua morte foi noticiada por diversos jornais, incluindo o clássico sensacionalista “Notícias Populares”. Um fim prosaico para quem viveu uma vida tão extraordinária. Nenhum telhado para escalar no além, apenas o descanso eterno para um corpo que desafiou a gravidade e as convenções sociais (e brutais) por tanto tempo.

São Paulo ergueu monumentos para bandeirantes que escravizaram indígenas e africanos, nomeou avenidas em homenagem a notórios canalhas burgueses, mas não reservou nem uma viela para seu mais famoso ladrão. Irônico, não? Talvez porque Meneghetti representasse (represente) algo que a cidade prefere esquecer: que sob a fachada de ordem e progresso da ideologia bandeirante, sempre existiu um submundo de rebeldia e contravenção. Enquanto isso, nos telhados da metrópole, dizem que em noites de lua cheia ainda se pode ouvir o eco distante de passos ágeis e o sussurro de uma frase em italiano: “Io sono un uomo”. Um homem que, à sua maneira torta e canhota, escreveu seu nome nos céus de São Paulo – ou pelo menos, nos seus telhados. Para terminar com outra frase de efeito do nosso anti-heroi:

 “Por que é que no mundo há uns tão ricos e outros tão pobres? Sou livre. Nasci livre e nunca serei um escravo por convicção.”

 

Gino Meneghetti e seus disfarces, numa foto de ficha policial nos anos 1920. Fonte: Polícia do Estado de São Paulo – publicado na coleção “Nosso Século” (1980) da Editora Abril – volume relativo a 1910-1930, página 269. Domínio Público.

 

“Equipamento de trabalho” do ladrão Gino Meneghetti apreendido pela polícia paulistana em 1926. Fonte: Polícia do Estado de São Paulo – publicado na coleção “Nosso Século” (1980) da Editora Abril – volume relativo a 1910-1930, página 269. Domínio Público.

Meneghetti é acompanhado por jornalistas e policiais durante prisão em 1954. Fonte: Acervo UH/Folhapress

 





Fonte: ICL Notícias

2 COMENTÁRIOS

DEIXE UMA RESPOSTA Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Sair da versão mobile